É segunda-feira de manhã e Mestre Curica parece bastante animado, andando de um lado para o outro do estúdio, fazendo graça e contando piadas sem parar. Estamos no primeiro dia de gravação do CD Pará Planetário e até aqui o trabalho andou mais rápido do que Kassin e Carlos Eduardo Miranda, os produtores encarregados do projeto, esperavam. A seu lado, Aldo Sena e Vieira, seus companheiros no grupo Mestres da Guitarrada, esperam pacientemente o próximo take de gravação e se divertem com as presepadas de Curica. Um pouco tÃmido, Kassin ri meio sem jeito das piadas do músico, que capricha na pornografia e nas palavras de baixo calão sem ligar nem um pouco para as mulheres presentes no local. E assim a gravação prossegue pelo resto do dia: descontraÃda e animada, bem de acordo com a música que Kassin e Miranda, mais a cantora Cynthia Zamorano, esperam mostrar ao mundo através do Pará Planetário.
Em uma conversa na lanchonete do estúdio com Miranda e Betty Dopazo, diretora de marketing da TV e Rádio Cultura, fico sabendo que, apesar da grandeza do projeto e das pretensões dos envolvidos (fala-se até em lançar o disco por uma gravadora internacional), o Pará Planetário nasceu de uma parceria informal entre os produtores e os responsáveis pelo Festival de Verão da Rádio Cultura, realizado em 2005 no último final de semana do mês de julho na Ilha de Algodoal. Acontece que, como é praxe nesse tipo de evento, a produção local trouxe jornalistas, produtores e músicos de fora do estado para conhecer o que a música paraense tem. Terminado o festival, Kassin e Miranda gostaram tanto do que ouviram que resolveram ficar mais um pouco. Já no dia seguinte estavam trancafiados no estúdio Apce, um casarão do começo do século passado localizado na parte antiga de Belém, trabalhando em parceria com a Rádio Cultura em um projeto de registro da nova música paraense, batizado posteriormente de Pará Planetário, um CD duplo com versões originais e remixes das músicas de artistas como Gabi Amarantos, DJ Beto Metralha, DJ Iran, Metaleiras da Amazônia, Grupo de Carimbó Uirapuru, La Pupuña e Mestres da Guitarrada.
Não é exatamente uma coletânea pontuada pela uniformidade artÃstica. Na verdade trata-se de uma compilação guiada exclusivamente pelo gosto pessoal dos dois produtores. O que Miranda e Kassin ouviram e gostaram durante sua estada no Pará entrou no CD. Em comum talvez o fato de que todos fazem música pop. Música com vontade de ganhar o mundo através de um tratamento eletroacústico orientado pelos dois produtores em parceria com Cynthia Zamorano, o guitarrista Pio Lobato e os DJs Iran e Beto Metralha, que durante a semana de gravação do Pará Planetário trabalharam como co-produtores do disco.
São intenções que se revelam no encontro entre Miranda e Beto Metralha. Foi uma tarde de conversas malucas sobre filmes de terror, quadrinhos, produções B e demais obscuridades, com direito à menção honrosa ao longa de animação "A Festa dos Monstrinhos Malucos", clássico da Sessão da Tarde injustamente esquecido nos dias de hoje. Mas enquanto o La Pupuña registra a sua mistura de guitarrada com surf music e rock progressivo, na lanchonete a conversa muda de rumo quando Miranda liga o som portátil que carrega para cima e para baixo desde que eu o encontrei pela primeira vez em Belém. Diante de um Beto bastante atento faz as conexões entre o tecnobrega produzido por ele e Iran e o som urbano global. Visivelmente impressionado com o que ouve
e bastante interessado nas batidas cruas e no arranjo minimalista da música eletrônica contemporânea, Beto começa a entender o lugar que o tecnobrega pode vir a ocupar nesse mesmo cenário. E melhor ainda: parece perceber que, tecnicamente, bastam apenas alguns upgrades tecnológicos para que o estilo se torne tão popular quanto o reggaeton, o grime, o banghra, o ragga/jungle e demais mestiçagens sonoras. Beto ouve com atenção e lamenta resignado, "tudo na música depende do grave, cara, mas com as caixinhas que eu tenho um nunca vou conseguir um grave desses". "É, véio", completa Miranda enquanto despeja um alucinado raggamuffin em cima de mim e de Beto, "isso aqui só com máquina. Tem que ter máquina pra fazer essas linhas de baixo. Só software não dá".
Tudo bem. Afinal a guitarrada e o tecnobrega são estilos eminentemente urbanos, nascidos na periferia de Belém. A guitarrada no começo dos anos 70, via o contrabando de discos do Caribe para o porto da cidade, e o tecnobrega no alvorecer do século XXI como a recriação digital da música romântica paraense dos anos 70 e 80. Ambos são a trilha sonora do lado mais miserável da cidade, que se recria constantemente através
da tecnologia barata e da pirataria. De um jeito ou de outro é possÃvel estabelecer conexões entre elas já que ambas compartilham de uma mesma origem e, embora em épocas diferentes, nasceram do mesmo processo de miscigenação cultural em vigor até hoje.
Mas e o Grupo Uirapuru? Olhando para estes senhores com idade entre 60 e 80 anos fica difÃcil imaginá-los como a última novidade da música pop, concorrendo lado a lado com Tego Calderón, M.I.A., Dizee Rascal ou Daddy Yankee. Pois lá estão eles, todos de uniforme e crachá no peito esperando que Miranda e Cynthia lhes dêem o sinal para entrar em estúdio (Kassin participou apenas da gravação dos Mestres da Guitarrada, voltando ao Rio de Janeiro em seguida).
É então que eu quebro a cara e vejo aqueles senhores superarem as minhas expectativas. Já faz mais de meia-hora que a gravação acabou e eles continuam tocando. A essa altura a lanchonete do estúdio já se transformou em um grande terreiro de carimbó. Calibrados por doses fartas de Velho Barreiro, conhaque de alcatrão sem o qual não tocam e nem sobem ao palco, os músicos batem forte nos tambores feitos de troncos de árvore em uma espécie de transe coletivo. A batida é sincopada e firme, acompanhada de um banjo basicamente percussivo e um saxofone que sustenta as harmonias do cantador principal enquanto os outros músicos repetem os refrões. Ninguém parece cansado nem disposto a parar de tocar. Juntos, eles me lembram mais um live PA de psy trance do que um grupo de música folclórica. Se música para dançar e indução ao transe é o que os produtores do CD estavam esperando, não poderia haver escolha melhor.
Sexta-feira, último dia de gravação. Passo no hotel para pegar Miranda e levá-lo ao mercado de São Braz, onde ele pretende comprar vinis de carimbó e guitarrada. No caminho vamos conversando sobre gibis e sobre porque Oliver Stone é o pior cineasta do mundo. Para Miranda ele é tudo o que há de pior no cinema norte-americano: brega, pomposo e egocêntrico. Tento defender o cara dizendo que JFK é um grande filme. Miranda não concorda e vamos discutindo até o mercado. Nada de música. Melhor assim, já que eu também não estou com disposição para lhe perguntar mais nada sobre o Pará Planetário. Após uma semana de Guaraná Garoto, na ordem de litros e litros por dia, ele me confessa que já está na hora de mudar de hábito. "Agora água mineral com gás é o que liga, véio", diz ele enquanto procura discos antigos para comprar. Depois de um tempo, se detém em uma caixa de Luiz Gonzaga em perfeito estado. O preço é uma pechincha. Negócio feito, é hora de retomar o trabalho.
De volta ao estúdio já não há muito mais o que fazer. Lá dentro, Beto Metralha e Iran produzem as bases da música que Gabi irá gravar sem nem dar bola para o técnico de som contratado para auxiliá-los. Os dois sabem muito bem o que querem e como produzir um bom tecnobrega. Seja em um estúdio de fundo de quintal ou em um estúdio de última geração como o Apce. Base pronta, Cynthia orienta Gabi nos vocais e finaliza a última etapa de gravação do projeto. Foram cinco dias acompanhando as gravações, bebendo Guaraná Garoto e jogando conversa fora. Mas agora tudo o que quero é ir para casa. Enquanto me despeço de todos, lembro de uma primeira conversa que tive com Kassin e Miranda sobre as suas expectativas com relação ao projeto. Com uma convicção impressionante, ambos me disseram estar confiantes no sucesso do CD em levar a música paraense aos quatros quantos do mundo. Se as previsões da dupla irão se concretizar? ImpossÃvel dizer. Mas a idéia de ver o tecnobrega, a guitarrada e o carimbó pulsando em conjunto com o som periférico mundial me agrada bastante. Não sob o viés reducionista da world music, mas como um segmento viável dentro da música pop urbana do século XXI. Enquanto esse dia não chega, continuamos por aqui produzindo música original e desafiadora. Infelizmente para consumo interno e longe dos grandes centros. Nas festas de aparelhagem, nos estúdios de fundo de quintal e nos terreiros do interior. Sob o calor dos trópicos, a festa nunca termina.
Rapaz, como eu não tinha lido isso antes?!?! Uma das melhores matérias postadas no overmundo até hoje! Esse negócio do norte ficar usando o Overmundo de vitrine tá quase me fazendo ir pra Belém, rsrsrs!
Abraços a todos aÃ!
BM
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