Análise sistêmica do Cinturão Digital
Fui instada a responder a uma entrevista e acabei fazendo um estudo sobre o que está sendo efetivado pelo governo estadual denominado “Cinturão Digital”. Embora localizado no simpático Estado do Ceará, considero que a realidade e a provocação reflexiva pode ser adaptada a todas as regiões do país. Sai como um manifesto despretensioso de quem já viveu por alguns anos a dor e delícia de ser implementadora de políticas de Inclusão Digital do Governo Federal e sabe da relevância do papel que nós, implementadorxs, temos nas desencontradas iniciativas de ID desse país. Trata-se de um contraponto propositivo à intencionalidade das políticas gestadas em gabinetes...
O Cinturão Digital visa a criação de infra-estrutura de fibras ópticas para cerca de 85% do interior cearense. É uma obra justificada por que pouquíssimas cidades do Estado têm acesso à banda larga. As que dispõem, cobram taxas exorbitantes como é o caso de Guramiranga que 1MB custa a bagatela de R$ 1.800,00. Indiscutível, portanto, a sua importância.
Como é indiscutível, também, a economia que o governo fará com a redução dos custos com telefonia, transporte etc. Bem como a rapidez e agilidade da informação e comunicação entre os setores públicos e sua modernização da estrutura administrativa. Sem contar na junção de alguns projetos desenvolvidos pelo governo que necessitam de conexão.
Com efeito, o Cinturão foi pensado pra atender inicialmente as demandas do Governo em educação, medicina, administração etc. Consiste basicamente em implementar as tais fibras, deixar num ponto e levar a conexão desse ponto para órgãos institucionais da esfera governamental nas localidades atendidas.
No entanto, quem levará a conexão para a casas das pessoas vai ser a iniciativa privada. O governo aposta no barateamento desse serviço pelo viés da concorrência. Se não é uma política de distribuição gratuita de banda como almejamos é de suma relevância, não resta dúvida.
Mas ainda que se considerasse que é um primeiro momento, o de entregar a empresas a tarefa de fornecer conexão, esse é o primeiro nó. As empresas cearenses alegam falta de informação para ficarem preparadas quando for aberta a concorrência. Alegam que isso pode favorecer grandes empresas vindas de fora por já dominarem esse tipo de tecnologia. Como beneficiadas serão, também, as operadoras de telefonia que não vêm cumprindo com o contrato de implementar as fibras e disseminarem a banda larga no interior.
Considero o projeto uma obra mais de engenharia do que de uma política digital pensada sistemicamente. E como obra de engenharia, o tecnicismo e seus números e seus jargões dão a tônica e afasta a população das discussões mais prementes. Talvez isso justifique a ausência de questionamentos e propostas para geração de renda, para inclusão e cultura digital, para tecnologia da informação e para pesquisa e desenvolvimento, por exemplo.
Economicamente, seria um momento para se pensar na formação de cooperativas de provedores e nas pequenas empresas. Momento para aproveitar a experiência das lan houses espalhadas pelos interiores como forma de geração de renda sustentável ou outras formas que fomentassem os pequenos empreendedores ou de economia solidária. Mas o governo investe na iniciativa privada de grande porte. E essa opção do governo favorece as grandes empresas. Desde a implementação da fibra até a chegada na casa das pessoa. Quem ganhou a licitação para implementação, foi uma empresa de São Paulo que levará divisas para seu estado, obviamente.
Era momento também, para se preparar os pequenos setores da economia para imensa demanda em serviços, em comercialização de equipamentos e indo além, no desenvolvimento de softwares e hardwares livres. Tal política adotada engendra a dependência de tecnologia e serviços vindas de fora. Sem xenofobia, mas pensando na movimentação financeira e circulação de verba, certamente contribuiria para diminuir o lastimoso estado de pobreza do nosso estado e a dependência do conhecimento técnico externo. Isso é o que costumo chamar de sustentabilidade tecnológica pouco referenciada nas ditas políticas digitais aplicadas nas três esferas governamentais. Pensar isso é pensar na importância que o software livre traz para autonomia do conhecimento e para o desenvolvimento sustentável do nosso país.
O projeto peca em não pensar a questão da dita inclusão digital. Aliás, o projeto de inclusão digital que existia no estado redundou num terrível fracasso, o famigerado “Ilhas Digitais”. Se percorreres o interior do estado como fiz recentemente, verás que estão quase todos fechados. O governo não deu continuidade e tampouco pensou em política digital de aperfeiçoamento ou substituição do fracassado projeto.
Em suma, o governo acerta em tentar trazer conexão para o interior e tentar promover o mínimo que é o mero acesso. Não se refuta e nem se discute a importância, mas o acesso é apenas a tão somente o primeiro passo. Tenho usado o termo política tecnológica ou política digital para designar o que chamamos de inclusão e cultura digital. Para mim inseparáveis e que carecem exatamente de ser considerado como uma política pública e ser dada sua devida dimensão.
A ausência de um comitê ou fórum instado a pensar sobre tal política pode ter contribuído enormemente para o Cinturão não ter sido pensado sistemicamente e excluir a pauta da “inclusão e cultura digital”. A ausência de mecanismos de controle social e político enseja que governantes façam seus programas desvinculados das demandas mais prementes. A sociedade civil precisa acordar da letargia e demandar, propor.
Em suma, o Cinturão Digital é, ainda, uma obra de engenharia e de política de gestão administrativa mas pode-se ir além. Pode-se transformar numa política de Estado e abranger propostas mais amplas. O governo do Ceará tem aberto canais para conversação com a sociedade civil. Tudo bem que depois de pensado quase tudo, mas passou a bola. Estaremos à altura para tal demanda?
Ainda na esteira das políticas digitais, estamos acompanhando com atenção os desdobramentos do projetos telecentros.br tocado pelo Ministério do Planejamento que tentou centralizar as políticas de Inclusão Digital. Mas isso é outro ponto para um próximo artigo.
Perguntas:
1.Qual a política do Cinturão Digital para ceder (ou não) conexões a associações da sociedade civil, quais demandas?
O governo pensou o Cinturão Digital para atender apenas suas demandas de conexão, inicialmente. Não se pensou em promover conexão para setores da sociedade civil como pontos e pontões de cultura, empreendimentos culturais do terceiro setor e tampouco para os telecentros.
Houve uma movimentação através do Fórum da Cultura Digital do Ceará em fazer um abaixo-assinado solicitando a inclusão dos pontos de cultura e dos telecentros. Movimento inicialmente focado na liberação de conexão. Chegamos a trocar ideias com o próprio governador pelo twitter que, de pronto, acatou e nos instou a levar a proposta.
Depois começamos a estudar o cinturão digital como um todo e percebemos que essa demanda é mínima frente às possibilidades de uma política digital sistêmica. Pudemos ter uma visão crítica do projeto e estamos na etapa de ser propositivos. Percebemos que haveríamos de pensar o todo. O acesso é a ponta do iceberg.
Localizar nossa reivindicação apenas para conectar os pontos de cultura e de inclusão digital seria não perceber que o acesso é apenas o primeiro passo para uma política digital e que somente o acesso não garante a real demanda por formação, tecnologia da informação, pesquisa e desenvolvimento, cultura digital e até de geração de renda.
Provocamos mais uma vez o governador pelo twitter com a pegunta mais ou menos assim: “quando será que o cinturão digital vai perceber o humano”. Além de retrucar nossa pergunta e responder que já há o humano no projeto porquanto haverá EAD, telemedicina etc, ele perguntou se haviam propostas nossas. Respondemos que sim e estamos nessa etapa. Tentando organizar pelo Fórum de Cultura Digital e os Pontos de Cultura, um Seminário / imersão eminentemente propositivo para elaboração de propostas exequíveis e apresentá-las ao Governo do Estado.
Ressalte-se que mais que apresentar ao governo do estado, pensamos que essa proposta poderia ser construída nacionalmente pois a realidade do Ceará não é distinta da do restante do país. Se pensarmos em uma intervenção aqui, com esse canal aberto e negociado com o governo, poderemos replicá-la e adaptar em diversos pontos do Brasil. E quem somos nós? Os muitos implementadores, oficineiros espalhados e que agimos em rede. Conhecemos a realidade das políticas digitais, somos peça essencial na engrenagem, o que nos baliza a fazer proposições e nos tornar agentes de implementação de tais políticas e não meramente executores de programas ou propostas. Somos oriundos de vários projetos governamentais aplicados nos últimos anos e estamos aptos a protagonizarmos ações sustentáveis de políticas digitais. Infelizmente as políticas executadas até aqui não conseguem perceber que não basta distribuir máquina e conexão. Como diria o Dpadua, um grande implementador que faleceu precocemente: “tecnologia é mato. O que importa são as pessoas.” Vamos fazer valer esse princípio.
Andréa Saraiva
Implementadora de Política de Cultura e Digital
http://twitter.com/andreasaraiva
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