Saltos invisíveis

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Eder Fonseca · Cândido Mota, SP
14/10/2007 · 25 · 0
 

Existem apenas duas profissões no mundo: os poetas e os não-poetas. Todas as atividades que se conhecem como profissões são, na verdade, apenas atividades aparentes, que não mostram o movimento interno da vida, aquele no qual se exerce a função, por assim dizer, poética. Essas atividades cotidianas – parte mais frouxa da realidade que se aparece - são apenas, digamos, as formalidades da profissão de fato.

A profissão verdadeira, ser um poeta ou um não-poeta está no movimento interno da realidade, a realidade primeira (a aparente não necessiariamente é a primeira), na qual reside diariamente a vida. A vida mágica, encantadora, na qual eclode em pico máximo nossa serotonina, nossa endorfina, não seria tola de residir na rua, na correria, no movimento frenético do dia-a-dia. Ela mora bem, escondida, onde é feliz (de outra maneira), se descobre, se inventa, cresce e se transforma numa grande vida. Ela se mostra apenas aos que a merecem, lutam por ela.

A divisão da poesia em parnasiana, simbolista, modernista, romântica, pós-modernista, concreta, neoconcreta, ou em tantas outras escolas (independentemente da ordem cronológica) é equivocada. Ela segue outra divisão.

Há os poetas motoristas de ônibus, os que você prontamente identifica ao entregar a passagem. Aqueles que você nota instantaneamente pelo semblante, pela postura que eles têm diante do ônibus, recebendo as passagens, como um oráculo que guarda enigmas. Você de prontidão nota que são os primeiros dias deles de trabalho, percebe a satisfação deles de terem chegado ali, numa grande empresa de transporte, conduzindo vários destinos por um significativo percurso. Aqueles que você olha e consegue vislumbrar o trajeto árduo de vida. Percebe que eles se sentem realizados, felizes, afinal, eles já não são mais um motorista de rural, um motorista de circular, mas sim um motorista de grandes distâncias. Adquiriram, por assim dizer, a evolução de sua metalinguagem (o ato de dirigir).

Há também os poetas gerentes de restaurante que começaram a trabalhar como garçons. Os poetas ajudantes-de-feira que, depois de muitas manhãs, compraram suas próprias barracas e viraram feirantes. Os poetas timoneiros que eram remadores. Os poetas meninos de rua que viraram malabaristas, trapezistas ou qualquer outra profissão dentro da arte circense. O catador de latinhas que virou poeta gari.

A introspectiva e tímida pessoa que virou um clown palhaço. O peão de obra que virou poeta mestre de obras. O menino com pneumotórax que virou poeta poeta. Uma empregada doméstica que virou poeta professora. Um flanelinha que virou manobrista. Um moto-boy que virou balconista. O bóia-fria que aprendeu mecânica auto-didaticamente e virou referência na área. A pobre empregada doméstica que vira poeta mãe e dona-de-casa própria. Um homem que se apaixona pela prostituta e a faz mulher de verdade. Um guri paraguaio que aprende a língua que só os mais nobres filósofos conhecem. Um menino classe média alta que vira pobre por conta própria e se envereda pela linguagem filosófica.

Há também a amizade que vira paixão. O acaso que vira amizade, que vira paixão. O amor que descobre que há um amor mais forte que ele, e se apaixona por ele. O gato que só come ração e, certo dia, trai sua domesticação e aparece com um pássaro entre os lábios. O garçom que ganha uma gorjeta. Os adolescentes que descobrem (e se descobrem aí) legião urbana, raul seixas e cazuza, e depois descobrem que eles "morreram".

São esses “pequenos†saltos, essas “pequenas†vitórias individuais desapercebidas, escondidas no cotidiano que são, entretanto, atividades poéticas.

É esse avançar que passa imperceptível, esse avançar de dentro, que muitos julgam coisas fáceis, como se para estar ali, ser "aquilo", bastasse simplesmente não ter estudo, não pensar, ser pobre, não ter metas (nem metalinguagem). Dizem serem profissões que não precisam de luta, de sonho, de batalhas, de angústias. Como se ser “aquiloâ€, como muitos se referem a essas atividades, fosse devido ao fato de não se ter conseguido ser um médico, um advogado ou outra atividade qualquer bem remunerada. Como se para se exercer essas atividades fosse condição básica ser um frustrado. É como se essas atividades fossem, na verdade, uma ausência da atividade suprema. É como se, na verdade, para se ser “aquilo†fosse necessário não ser, não ter sido, não vir a ser, não ter encontrado (e jamais encontrar) a felicidade.

Não é o lugar que se ocupa que faz as pessoas vitoriosas, felizes, realizadas, alegres, mas sim o movimento que se faz da partida de vida até onde se conseguiu chegar e, principalmente, como se deu esse processo. A felicidade está dentro, não fora. A felicidade é um movimento, não um lugar que vem acompanhada de brinde a um cargo. São esses percursos internos, que ocorrem dentro da gente, que não são captados cotidianamente, a profissão poética verdadeira.

A profissão poética é um movimento que se dá dentro da gente. É o ajudante de mecânico, daquele mesmo mecânico autodidata, que descobre o mundo e ganha-o, por conta e risco próprios. É esse mesmo mecânico autodidata que se casa com aquela empregada doméstica dona-de-casa, e geram um menino. É esse menino que ganha, daquele que ganhou o mundo por conta e risco próprios, um banquinho para olhar pela janela, para além das quatro escuras paredes do mundo corrente, e começa a ver no horizonte a possibilidade de ser poeta e mostrar para o mundo o próprio mundo - este que vive inaudito na realidade.

Não importa como, no decorrer da vida, se trafegou por ela: seja de jegue, de circular, de carroça, a pé, de bicicleta, de carro ou simplesmente “de ponta de canetaâ€. A profissão é ser poeta, o resto todo é que são atividades complementares indiferentes.

Pode ser simplesmente a menina que se descobre, vira mulher e se casa com o poeta: o movimento do fazer poético. Ou simplesmente o menino que cresce e cede o banquinho que ganhou de seu irmão - o que ganhou o mundo - para as outras pessoas tentarem ver o que está do lado de fora da janela, dentro das pessoas.

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