O presente tópico é um clássico e, confesso, um de meus temas prediletos. Foi ele, inclusive, braço direito e mecenas desses escritos, merecendo, portanto, a devida atenção e o louvor pomposo de todas as suas possibilidades. Porém, antes de desnudar a importância que atribuo ao ócio – que recomendo não só para mim, mas para todos os homens e mulheres desse planeta – devo conter meus ânimos e dar vazão ao debate sobre tudo aquilo que se considera o honrado não-ócio.
Em que consiste o contrário do ócio? Servir o Estado, a Deus, ou ao Mercado? Servir, servir e servir? Em todo lugar que procuro, por mais que me esforce, não consigo encontrar outra concepção de não-ócio que escape ao conceito de servidão.
Um dos grandes pilares do não-ócio é o trabalho, atividade que, segundo alguns, dignifica o homem. O trabalho, segundo eles, é sua atividade mais importante, pois faz crescer as virtudes materiais e espirituais da raça humana, além de produzir a riqueza e prosperidade merecida por cada nação. E tudo se passa sob o confortável ninar de uma mão invisÃvel. Foi o trabalho que ergueu pontes, desbravou o céu, furou o espaço, aprofundou o mar, visitou a mente. Foi o trabalho que encurtou distâncias, materializou a memória, tornou mais jovem a idade e mais saborosa a carne. Foi o trabalho, e só pelo trabalho, que a vida adquiriu contornos mais fáceis, seguros e duradouros. Graças ao trabalho a raça humana foi devidamente dignificada.
Mas do que estamos falando?
Certamente não é do mesmo que um trabalhador boliviano, por exemplo. Seus ancestrais viram, à época da colonização, a folha de coca e seus atributos sagrados serem taxados de demonÃacos, foram acusados de tributarem ao ócio suas vidas, incapazes do esforço digno e necessário do trabalho. Mas a Igreja e a empresa colonial deram um jeito nisso. Para combater o ócio do demônio, trabalho! Para combater o ócio do demônio, religião! Para combater o ócio do demônio, servidão! No entanto, logo perceberam os Certos que a disposição demonÃaca da folha de coca, mais que um instrumento do ócio, poderia se tornar um instrumento do não-ócio, do trabalho, da religião, da servidão. A falta de fome e o maior vigor proporcionado pela mastigação da folha ajudavam aqueles debilitados homens, indolentes Ãndios, a produzirem ainda mais, e era, inclusive, necessária para combater o ócio. E assim, em nome de Deus e do Mercado, dignificá-los e estimular a produção. Em nome do Mercado e de Deus, estimular a produção e dignificá-los.
Atualmente, a dignidade do trabalhador boliviano vale menos de um dólar por dia. A estatura média de um boliviano, devidamente dignificado pelo trabalho, não passa de 1,60 m. A expectativa de vida de um trabalhador boliviano, necessariamente dignificado pelo trabalho, não ultrapassa os 45 anos de idade. E é por aqui que começa o contrário do meu ócio.
Alguns poderiam argumentar que fora à custa do trabalho e da produção que veio o homem a edificar todo o mundo que concebemos, seus avanços tecnológicos e os proveitos que deles advém. Eu concordaria totalmente e, ainda assim, não me afastaria do Ãmpeto ao ócio. Ao contrário, esse é justamente o exemplo que quero trabalhar nesse momento: o fruto do não-ócio.
Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que, a despeito da satanização do ócio por nossa sociedade, é o ócio imposto à força para um número exorbitante de pessoas que dele, em termos, nunca quis desfrutar. As mesmas máquinas avançadas que nesse exato momento invadem os mercados internacionais, e assim retiram o emprego de milhares de trabalhadores, poderiam ver correr seus resultados em sentido inverso. Fico absolutamente perplexo ao notar como ninguém se espanta com o fato de que o avanço tecnológico não é empregado para que trabalhemos menos, mas, ironicamente, para que trabalhemos mais por menos.
Lanço o desafio: aquele que me convencer que é da natureza do homem não utilizar o progresso cientÃfico e tecnológico para minimizar nossas tarefas nesse belÃssimo planeta, poupar nosso tempo, sendo o certo, por outro lado, sua seletividade extremada, despejando aos incautos mais sofrimento e menos tempo de viver; mais frustração e menos realização; mais cobiça e menos desfrute; mais cinza e menos azul; se alguém me provar ser isso de nossa natureza inata, então, do alto de minha humildade, desço do meu pedestal de ouro e me ofereço até o último dia de minha vida como seu escravo. Para assim ser devidamente dignificado.
Dorme, acorda, se desloca, trabalha, trabalha, come, trabalha, trabalha, se desloca, come, dorme (sonha?), acorda, se desloca, trabalha, trabalha, come, trabalha, trabalha, se desloca, come, dorme...
O fruto do não-ócio é para poucos. E é para raros. A maioria repete o mesmo ritual diário e recebe em troca apenas o suficiente para continuar em sobrevida. Mas então, com quem fica o fruto do não-ócio? Fica por aÃ, concentrado no bolso de poucos. Mas só no bolso. Muitos desses poucos, de tão tontos, nem ao menos gozam de todo ócio que o fruto do não-ócio pode lhes proporcionar. Também eles dormem, acordam, se deslocam, trabalham, trabalham, comem, trabalham, trabalham, se deslocam, comem, dormem... e não sonham. E o que fazem, fazem pelo prazer de serem mais. Fazem pelo prazer de serem o que não são, pelo prazer de terem o que não tem, pelo prazer de não ter prazer.
Se aquelas mesmas máquinas avançadas, que nesse exato momento invadem os mercados internacionais, e assim retiram o emprego de milhares de trabalhadores, trabalhassem agora para nós, a todo vapor, de modo que a vida se limitasse à contribuição individual de cada um para o todo, e que essa contribuição, qualquer que fosse, fosse mÃnima e encarada tão somente como uma contribuição... se essas máquinas assim trabalhassem, e a vida assim fosse vivida, por que haveria eu de querer ser médico e não varredor? Não pensaria duas vezes em ser varredor, posição muito mais vantajosa e, quem sabe, disputada, nesse cenário. Ainda não está claro?
Tudo o que quero dizer é que a vida poderia funcionar como uma imensa “aldeia indÃgena high-techâ€, trabalhando-se o mÃnimo possÃvel, sempre em prol do grupo, de forma que todos se envolvessem, mas, ao mesmo tempo, se encontrassem livres boa parte do tempo para desfrutar da vida. A tecnologia trabalhando para o homem, individual e coletivo, transformaria a vaidade em uma penitência, já que ninguém mais poderia se vangloriar da posição que ocupa. O cargo, a função, a tarefa, a habilidade, a paixão, a força, a sagacidade, a técnica, tudo, operaria em prol do conjunto e assim seria encarado.
O encanador seria alguém tão importante quanto o engenheiro para o funcionamento do todo. O músico tão importante quanto o matemático. O varredor tão importante quanto o médico. No entanto, o varredor, depois de cumpridas suas 2 horas de trabalho, estaria livre, enquanto o médico, por seu dever ontológico, nem tanto. Ser o varredor, nesse caso, consistiria em ocupar uma das posições mais ilustres dessa sociedade imaginária, na medida em que sua mente, livre mesmo enquanto trabalha, desafoga-se mais rápido da obrigação que presta ao todo, restando-lhe o verdadeiro sentido da vida, que é puro e simples: viver. Por isso gostaria mais de ser varredor que ser médico. Para essa sociedade, que cultivaria o ócio institucionalizado, e sem culpa, eu me daria por inteiro, durante as tais 2 horas de trabalho, e seria, sem dúvidas, o melhor varredor que pudesse. E é por aqui que começa o contrário do meu não-ócio.
Só para lembrar, a respeito daquela coisa toda de “aldeia indÃgena high-techâ€, que a principal queixa – e com razão – dos colonizadores europeus sobre os Ãndios era sua indolência. Seu ócio despudorado. Infelizmente, os Ãndios eram civilizados demais para serem compreendidos...
Creio que meu honrado leitor começa agora a perceber os rudimentos de minha concepção de ócio. Como disse, seria impossÃvel descrever o nada sem antes mencionar o tudo. Devo confessar, no entanto, que o tÃtulo desse tópico só é o que é por conta de uma mera questão de estética literária. Caso esse parnasianismo obsessivo me abandonasse por um momento, e assim desse lugar à s coisas tais quais eu realmente as vejo, bastaria tê-lo acrescido de uma pequena reta, com ângulo de 45 graus, inclinada para a direita, na letra “eâ€, para assim traduzir de uma só tacada toda esta lengalenga: vida é ócio.
Acima do trono dos imperadores chineses, lia-se em um painel a seguinte inscrição: “Não ajaâ€. Confúcio, seu principal filósofo, dizia que “aquele que governa um povo dando-lhe o bom exemplo é como a Estrela Polar, que permanece imóvel enquanto todas as outras se lhe movem em tornoâ€. Pois bem, as virtudes do ócio começam por aÃ. Sou um entusiasta do ócio aristocrático, tão entusiasta que não concebo a vida de forma outra que não a de uma aristocracia global, uma aristocracia do Homem sobre a Máquina. E isso não é minha opinião exclusiva, ainda que minha versão se traduza de forma um tanto mais alegórica e radicalizada – a iconoclastia é outra obsessão...
Também os filósofos gregos consideravam que apenas eles, os filósofos, teriam capacidade de governar, pois uma vez que, dedicados ao ócio, livres das garras do mundano, entregues ao pensamento, à reflexão, à observação, seriam, assim, os únicos dotados da verdadeira sabedoria, que se traduz, nada mais, nada menos, na proveitosa sensibilidade social e no autoconhecimento que somente o ócio é capaz de fazer brotar. Também Karl Marx o disse, só que de forma tão complexa e visceral que pouco se nota em semelhança.
Aliás, o bom e velho Marx também deve ao ócio grande parte de seu êxito. Ou melhor, deve a Engels, que oportunamente o propiciou ao amigo. E também foi um amigo quem me disse certa vez sobre uma tribo qualquer na Ãndia, cuja função do lÃder se resumia na desgastante tarefa de fumar ópio e emanar boas vibrações para os seus. Como a ilha foi devastada pelo Tsunami, creio que o tal lÃder tenha fumado ópio de menos ou, talvez, até trabalhado um pouco...
O fato é que somente pelo ócio, seja ele produtivo ou não, o ser humano é capaz de se conhecer verdadeiramente bem e, com isso, também conhecer seus pares e para eles se entregar. O ócio ao qual me apego não é sinônimo de apatia, de desmotivação, de estagnação. Essa é a face real do não-ócio, tal qual o concebemos atualmente. Repito, essa é a face real do não-ócio, tal qual o concebemos. Ele sim, o não-ócio, é o grande agente da apatia, da desmotivação e da estagnação, pois preenche de atividades vazias e sem retorno um tanto de mentes que, do contrário, poderiam dedicar-se à paixão criativa daquilo que nunca vieram a descobrir.
O ócio de que falo é a vida. Pois a vida são pessoas, e lugares, e emoções, e sol, e chuva, e lama, e música, e arte, e livro, e filme, e beijo, e sono, e riso, e choro e tantas outras coisas, submetidas a nÃveis tão diferentes e possÃveis de interação, que somente possuindo bastante de tempo para ela, ócio suficiente para entendê-la, é que se chega a amá-la e assim compreendê-la um tantinho. Pergunte ao trabalhador boliviano, ele sabe do que falo.
Mas não tente o mesmo com um advogado bem sucedido. Ele é tão desprovido da vida quanto o trabalhador boliviano pois, ainda que goze de momentos fugazes de felicidade e ostentação, jamais chega a entender que a vida são pessoas, e lugares, e emoções, e sol, e chuva, e lama, e música, e arte, e livro, e filme, e beijo, e sono, e riso, e choro e tantas outras coisas. Isso, para ele e para muitos, é o lado corriqueiro da vida. Infelizmente, eles são muito incivilizados para compreender...
O texto está legal mas eu vou fazer umas observações:
- de quem é a foto e o que é essa foto? Parecem indianos, são brasileiros? Quem é o fotógrafo? Um crédito seria interessante.
Eu acho que o texto está um pouco longo para o overblog. Ficaria melhor no Banco de Cultura, até porque, é um ensaio completo. Assim o leitor teria a alternativa de fazer download do texto para imprimir e ler com mais calma, acho que seria interessante, é um texto complexo.
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