Além do campanário

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Luiz Guerra · Rio de Janeiro, RJ
14/3/2006 · 54 · 0
 

Se não estiver muito esquecido, foi justamente na época mais selvagem de minha vida, aos 13 anos de idade, que alguém da turma descobriu que todo domingo havia lanche, pingue-pongue e futebol de graça para os membros da Congregação Mariana de nossa paróquia, em Marechal Hermes.
“Uma moleza”, vibrava Germano.
“Nem tanto”, alertou Mário Alfinete, horrorizado com as condições desse novo filão recreativo: entrar para o grupo religioso, ter aulas de catecismo, participar de reuniões, confessar-se e comungar regularmente, além de assistir a pelo menos três missas por semana, tudo na base de um cartão de freqüência sem o qual ficava vedado o acesso à mesa de pingue-pongue e ao campo de futebol, um rala-coco atrás da sacristia.
“É covardia”, disse eu quando me convidaram, menos horrorizado do que Mário Alfinete, porém furioso com a técnica de cooptação dos jovens por parte dos congregados. “Além do mais, o que é que um cara com o apelido de Diabo vai fazer na igreja?”
Ninguém riu. Chamavam-me de Diabo, mas não admitiam que me orgulhasse disso.
Foi quando Sérgio Canelinha, o mais velho da turma, saiu-se com esta, possivelmente surrupiada do avô, maçom, ateu e adorador de bode:
“Não conheço ninguém mais católico que o diabo.”
Risos e mais risos.
“Tudo bem”, disse Germano, “vamos fazer uma experiência. Se for mesmo uma droga, a gente se manda.”
Foi por aí. Mas só com esta crônica é que os meus amigos de adolescência vão finalmente saber que o diabo de Sérgio Canelinha tinha a inicial minúscula e dizia respeito ao suposto grande Inimigo, não a mim.
Antes dissesse.
Fizemos a tal experiência. A grande verdade é que me tornei o melhor aluno em catecismo, decorei em menos de três dias todo o livreto de perguntas e respostas, fui uma das melhores vozes do coro, tirava de letra e salteado as orações do imenso breviário dos leigos, quase sucumbindo, por fim, ao desejo de ser coroinha. E comungava, comungava piedosamente. Com o tempo, meus amigos já estavam em outra, enquanto eu, um verdadeiro santo, não dava a menor bola ao pingue-pongue nem à peladinha atrás da igreja. Para dizer tudo, achava até pecado mortal distrair-me com essas coisas. Qual um novo Bocage, rasgara o meu cartão recreativo para crer na eternidade.
Isso não durou seis meses. Na festa de entrega das fitas de aspirante, fui abordado por uma paroquiana do barulho, uma colega do ginásio de arrebentar o comércio.
“Você não é o Diabo, lá dos apartamentos?”, perguntou, com um sorriso maroto nos lábios.
Não era mais, pelo jeito. E aquilo doeu, bateu de repente uma terrível saudade...
Começamos a conversar, a reconhecer nossas igualdades, ficamos um tempão de mãos dadas no adro da igreja, nem me lembrava mais de receber a tal fita.
A seu pedido, levei-a para ver o balcão do coro, subimos ao campanário, depois mostrei-lhe uma pequena cela, lá no alto, onde repousava um grande sino desativado, coisa de corcunda de notre-dame.
Só então me dei conta de que não havia respondido à sua pergunta. Puxei-a contra mim, olhei direto nos seus olhos e respondi:
“Claro que sou o Diabo.”
Um grande amasso. O mais poético, piedoso e diabólico amasso da minha vida.

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Autoria
Luiz Guerra, 57, poeta e cronista carioca.

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