Dois barbeiros comemoram o fato de um deles estar em perÃodo recorde de abstinência. "Acho que já são 21 dias sem beber", diz o mais velho, dono do estabelecimento, a um cliente que devia ser enfermeiro. Ou traficante, não sei. Chegara dizendo que aplicava injeções, "Eu vivo para furar os outros".
O ajudante, mais novo, complementa: "É, acho que já tem 21 dias mesmo".
"Pois foi eu mesmo quem decidiu parar", retoma o primeiro, "Foi assim: no Réveillon, dia 31, eu bebi o dia todo até umas oito da noite. Aà dep..."
"É bom você parar mesmo, jovem. Vai que você acaba se encontrando com uma moça evangélica e tal...", diz o cliente.
"É, mas ele não bebeu mais mesmo não", interrompeu o ajudante, que parecia, em realidade, ser o namorado de seu patrão. Ciúme aliado a um caso de amor enrustido é a melhor coisa para manter firme o foco da conversa, ou muda-lo com a mais fina sutileza. "Eu que vim trabalhar aqui mal, na segunda passada, mas ele até agora...", terminou assim de polir a reputação do chefe.
"Então, agora eu só vou beber no São João, pai!"
"Você vai pular até o carnaval, rapaz?! Mas e a Baleia vai sair de novo", interrompe o cliente. O ajudante fala algo inaudÃvel, talvez tivesse se distraÃdo e cantado um trecho do samba que colocaram para tocar no DVD. "AÃ, o Bloco da Baleia aà vai sair na festa de Itapuã. Você não vai beber nem assim?", insiste o cliente furador, enquanto o abstêmio passava creme de barbear em sua cabeça.
"Não, rapaz, você vai ver. Agora só lá para o São João! Olha, eu era daqueles caras que não consegue ir para alguma festa, algum lugar assim sem beber. Tinha que beber para me divertir. Mas ag..."
"Você também, hein?! Está há quantos anos nessa carreira?", diz o furão.
"Iiiiihhh, rapaz...!", respondeu cientificamente. "Mas é até por isso mesmo, para eu me cuidar agora, né?"
"É, tem que achar alguma coisa para substituir essa vontade aÃ!"
Os quatro pensam "Sexo!", mas como havia um grande elefante gay no recinto, falou-se de outros exercÃcios fÃsicos.
"É, rapaz, agora eu vou voltar a malhar na academia, que eu estava parado. Agora você vai ver que eu vou ficar –"
Brota uma senhora na porta da barbearia e pergunta: "Tem cerveja aÃ?"
"NÃO!", dizem os três em unÃssono.
Mais tarde, voltando da academia, ainda refletindo sobre o milagre do baiano folião abstêmio quase às vésperas do carnaval, testemunho outro.
"Não, porque aà então rapaz, como eu taha dizendo, Jossiscrene...", ia dizendo um amigo, este impreterivelmente aposentado, com farda de aposentado (leia-se: bigode desgrenhado, embora curto; camisa polo de tecido 75% sintético, calça surrada há uns dois dias sem lavar direito).
À sua esquerda, bem perto, estava o amigo ouvinte. Este um trabalhador beirando os 60 e poucos, calvo, de bigode pintado de preto, vestido como se para afirmar que aquelas seriam suas últimas férias. Não quis saber de Jossiscrene (ou seja qual for o nome genérico, não me lembro bem).
Enquanto eu passava, me olhava. Olhei por aquele incômodo de sentir que há alguém vigiando. O que vejo? O respeitável senhor me fitando convicto, levantando as sobrancelhas num arco que, faminto, insinuava "Amo muito tudo isso", sem preocupar-se em obter a aprovação do amigo. Este, numa solidariedade do tipo "É, meu velho, eu te entendo. Se fosse uma mulher gostosa eu olharia também", calou-se brevemente.
Sigo andando para atravessar uma curva e seguir à outra, ainda em choque. "Quem diria?! Será que estamos evoluindo ao menos um pouquinho? Sou paquerado em público por um senhor, não ouço piadinhas de ninguém ao redor, nem de seu amigo... É..."
Mais adiante, uns 30 metros depois do ocorrido, vejo se aproximar uma figura meio estranha. Um cinquentão acabado, franzino, trajando o uniforme de jovens de periferia, com todas as marcas devidamente expostas.
Lá vinha ele, com um olhar sofrido, mas deveras orgulhoso. Fiquei espantado ao reparar, mais de perto, que esse homem estava usando precisamente o estilo de bigodinho do finado Adolf Hitler.
Com um contraste preocupante desses foi que se deu um interessante inÃcio de tarde.
Crônica escrita no perfil do autor no Facebook, em 21 de janeiro de 2014, sobre milagres perto do Carnaval.
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