O Ano que Engoliu o Mundo

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Pablo Capistrano · Natal, RN
18/5/2008 · 48 · 0
 


Estamos chegando ao fim da primeira década do século XXI e eu ainda estou tentando entender o que aconteceu. Talvez seja um defeito do meu tipo cerebral, algum certo hábito pouco saudável de querer saber o que é que eu estou fazendo aqui, nesse mundo. Esse cacoete leva sempre meu olhar para trás, na busca de encontrar algum nexo no que passou. Porque como sempre grita Zack, o vocalista do Rage Against The Machine, no som do meu carro: “quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente agora, controla o passadoâ€.

A bola da vez das recapitulações, revisões e releituras é, nesse mês de Maio, o ano de 1968. Eu passei longe de ter vivido aquela época. Nasci em 1974, bem no meio do pesadelo. Para o bem ou para o mal escapei do sonho dos sessenta e cresci embalado pelo horror liquidificado que tomou conta do mundo na época punk.

Mas, apesar disso, há algo de 68 em mim. Por influência do meu pai e da minha mãe e de todos os malucos que freqüentavam nossa casa na minha infância, 68 andou ao meu lado por boa parte da minha adolescência e juventude e, apesar de eu não ter a mínima idéia do que significava ser um produto daquela geração, eu podia sentir que algo estranho havia ocorrido pelo planeta poucos anos antes do meu nascimento, uma onde que alterou de modo muito significativo o senso de direção dos meus pais e os fez um pouco, digamos, “exóticosâ€.

Há luz e sombra no ano de 68. Existem os Beatles, mas também há o Velvet Underground. Tem o Maharish, a meditação transcendental, as flores, a macrobiótica, as sementes de girassol e a busca de uma vida mais saudável. Mas tem também a heroína, o ácido lisérgico, e a bosta da cocaína que deixou muita gente doida no rastro dos anos. Há o verão do amor (que foi um ano antes, mas está no mesmo pacote), há a Primavera de Praga e Woodstock (que foi um ano depois, mas está também no pacote). Assim como há o DOI-CODI, o Vietnã. Tem o Che, mas tem também o Pinochet. Tem o Bob Dylan e o Leonard Cohen, Roberto Carlos e Arnaldo Baptista, Iggy Pop e os Byrds.

Há leveza e esperança, mas também solidão e desespero. Essa mistura explosiva das forças que compuseram a experiência do século XX é que tornaram a geração daquele ano tão marcada pela dor e a delícia de suas experiências políticas e existenciais. O êxtase da liberdade dos desejos, e o muro duro de um mundo que se transformava em uma gigantesca engrenagem de moer carne humana levaram a geração de meus pais a vivenciar, em uma única vida, os prazeres da esperança e dos sonhos de transformação e a dureza miserável do horror político de uma ditadura.

Se o século XX tem um ano que o sintetize, esse ano é 68 e seus arredores trazem à tona os principais dilemas do século. Hoje, o discurso politicamente correto é derivado diretamente do ideário da nova esquerda heideggeriana, que constituiu-se a partir de Sartre, e que ditou uma fusão conceitual larga, envolvendo Nietzsche, Freud e Marx em um imenso balaio de gato teórico, com pitadas psicodélicas de arte de vanguarda e do fusion de Miles Davis.

Emancipação feminina, luta pela diversidade sexual, defesa do meio ambiente, libertação dos desejos, direitos humanos, esses são ideários libertários que emergem do ano de 68, mas que já estavam latentes desde o final da primeira guerra e moveram os loucos anos vinte com sua vanguarda modernista (esses foram realmente os anos revolucionários do século, mas o retrocesso que se seguiu com a explosão do totalitarismo nos anos 30 gerou uma rebordosa que levou muita gente boa para o caixão antes do tempo). Essa força revolucionaria que ameaçou varias vezes eclodir e engolir o mundo, parecia que finalmente iria triunfar em 68. De certa forma, ela triunfou, e definiu os rumos do discurso oficial dos anos que se seguiram, mas, como depois de todo carnaval, vem uma grande e desconcertante ressaca, o tempo cuidou de mostrar que há uma linha muito tênue separando o sonho do pesadelo.

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Pablo Capistrano
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