Berrando no terreiro alheio

Zema Ribeiro
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Zema Ribeiro · São Luís, MA
27/7/2011 · 22 · 0
 

“O meu boi morreu / que será de mim / manda buscar outro, maninha / lá no Piauí.†A quadra popular me vem imediatamente à cabeça quando a Revista Overmundo me alcança com o desafio de uma pauta que aborde as discordâncias entre maranhenses e seus vizinhos do Piauí em relação ao bumba-meu-boi – diriam os segundos que o folguedo teria origem lá; afirmam os primeiros que bois como os nossos só existem aqui, como se de bumba-boi tivesse falado Gonçalves Dias em seu célebre poema Canção do exílio.

O primeiro comentário vem da minha esposa: “Eu nunca ouvi falar nem em boi no Piauí, quanto mais que o boi teria surgido láâ€, ela afirma. Aqui no Maranhão o boi é sinônimo de bumba-meu-boi, a manifestação cultural, não aquele que vai ao matadouro e berra menos que o homem, como na máxima de Torquato Neto, o ilustre piauiense da Tropicália: “Leve um boi e um homem ao matadouro. Aquele que berrar mais é o homem, mesmo que seja o boiâ€.

Como a bandeira maranhense idealizada pelo poeta Sousândrade, o bumba-meu-boi traz elementos das três raças que constituíram o povo do Maranhão: o negro, o índio e o branco. Para o folclorista Luís da Câmara Cascudo, “o bumba-meu-boi surgiu no meio da escravaria do nosso país, bailando, saltando, espalhando o povo folião, suscitando grito, correria, emulação. O negro, que desejava reviver as folganças que trouxera da terra distante, para distender os músculos e afogar as mágoas do cativeiro nos meneios febricitantes de danças lascivas, teve participação decisiva nessa criação genial, nela aparecendo dançando, cantando, enfim, vivendo. Os indígenas logo simpatizaram com a ‘brincadeira’, foram conquistados por ela e passaram a representá-la, incorporando-lhe também suas características. O branco entrou de quebra, como o elemento a ser satirizado e posto em cheque pela sua situação dominanteâ€.

Cláudia Márcia Ferreira organizou o livro Festas populares brasileiras, onde aponta as denominações que a “brincadeira†ganha no país: “Folguedo de origem ibérica, difundiu-se por todo o Brasil. Está presente nos mais variados festejos dos ciclos junino, natalino e carnavalesco, com denominações diferentes. Tem as seguintes variantes: boi-bumbá (Amazonas e Pará); boi-de-reis (Acre, Ceará, Paraíba e Espírito Santo); boi-calemba (Rio Grande do Norte); boi surubim (Ceará); boi malhadinho ou boi-pintadinho (Rio de Janeiro); boi ou boizinho (São Paulo e Rio Grande do Sul); e boi-de-mamão (Pernambuco e Santa Catarina). Como bumba-meu-boi ocorre nos estados do Maranhão, Piauí, Pernambuco, Alagoas e a Bahia.â€

Domingos Vieira Filho, que hoje batiza importante Centro de Cultura Popular localizado na Praia Grande, um dos três bairros do Centro Histórico da capital maranhense, afirmou: “É quase certo que nos veio a folgança através dos negros escravos que saindo da Bahia atingiram o Maranhão através do Piauí. Em terras maranhenses se acrescentou de novos elementos num processo comum ao folclore, e se diferenciou da brincadeira do boi na área do Nordeste açucareiro, embora conserve muitos pontos em comum no que concerne ao fio temático e à personália.â€

O folclorista maranhense seria taxativo ao afirmar que “não existem mais dúvidas quanto às origens históricas desse folguedo dramatizado que resiste ao passar dos anosâ€. Menos, seu Domingos, menos. As respostas, entre brincantes ouvidos por este repórter em um arraial, não reconheciam o Piauí como possível origem para o bumba-meu-boi e algumas tiravam um Parnaíba de sarro com os vizinhos. “Boi no Piauí? Não! Lá seria ‘bumba-meu-bode’â€, “Se o boi começou no Piauí e hoje eles não têm nada, os maranhenses trouxeram tudo para cá. É meio sem rumo isso do boi ter começado lá†e “Pode até ser, ter boi lá hoje, ou mesmo ter começado lá. Mas tudo que tem no Piauí no Maranhão tem melhorâ€, eram as respostas mais comuns.

Originário do Maranhão ou do Piauí, o primeiro provável registro sobre o bumba-meu-boi na imprensa brasileira vem de Pernambuco e data de 1840. Foi feito pelo Pe. Miguel do Sacramento Lopes Gama, que editava O Carapuceiro, um dos pioneiros na crônica de costumes do país – não confundir com o colunismo social insosso que se lê por aqui, aí e além. Em A estultice do bumba-meu-boi, de 11 de janeiro daquele ano, o frei mestre criticava a ridicularização da figura de um sacerdote entre os personagens do bumba pernambucano e criticava a sociedade em geral por conhecer mais de novelas que da Bíblia.

Definido em seu cabeçalho como um “periódico sempre moral e só per accidens políticoâ€, assim terminava o texto do jornal naquela data: “Mas como há de se proibir o bumba-meu-boi, se dona Mariquinhas, dona Teté, dona Canexa, dona Chiquinha, dona Belinha, dona Faustolina, dona Fandangolina, dona Galopinda, dona Caxuxolina gostam tanto deste precioso divertimento? Alardeamos os nossos progressos de civilização, e ainda aplaudimos o bumba-meu-boi, folguedo que, sobre o que tem de imoral, pode-se chamar o non plus ultra da estupidez e da tolice! Não sei quando tomaremos juízo.â€

As principais críticas recebidas pelos grupos de bumba-meu-boi no Maranhão dizem respeito à sua parintinização: se outrora eram formados por pessoas das comunidades em que os bois estavam inseridos e/ou se formavam, atualmente é adotado certo padrão de beleza, com índios “sarados†e índias “malhadasâ€. O termo diz respeito à cidade de Parintins, no Amazonas, onde os bois-bumbás mais se assemelham às escolas de samba cariocas que aos bois maranhenses.

Na região amazônica a disputa é ferrenha, com apenas dois grupos – Caprichoso e Garantido – brigando pelos títulos, ano a ano. Por lá a lata de coca-cola, originalmente vermelha, já chegou a ser pintada de azul para satisfazer uma das torcidas. É algo mais acirrado que jogos de futebol entre Vasco e Flamengo, Grêmio e Internacional, ou para ficarmos aqui por nossas fronteiras, Sampaio Corrêa e Moto Club ou River e Flamengo do Piauí.

No Piauí, embora o número de grupos seja maior que em Parintins, há também o caráter competitivo no período junino. É o que nos informa o Proparnaíba, sobre o São João 2011, cujo título ficou dividido entre os bois Garantido e Rei da Boiada. No Maranhão não há competição entre grupos – nem mesmo quando estes se encontram nos louvores dedicados a São Pedro (29) e São Marçal (30 de junho) – o máximo que acontece são desafios, em que um cantador tira uma toada de improviso em desafio a outro, de outro batalhão – como são denominados por aqui os grupos de bumba-meu-boi.

Para Andréa Oliveira, jornalista que escreveu Nome aos bois: tragédia e comédia no bumba-meu-boi do Maranhão – de onde laçamos várias citações ao longo desta reportagem – a polêmica entre maranhenses e piauienses acerca do folguedo não existe: “Isso é mais aquela velha mania de querer colocar Maranhão e Piauí como rivais em tudoâ€, afirma. “Não creio que os piauienses se arvorem a querer a paternidade do bumba-meu-boi. E nós, no Maranhão, às vezes podemos achar que somos os pais da manifestação por que ela é o que há de mais representativo em nossa cultura popular, como no Piauí o são as quadrilhas. É impossível precisar onde surge o bumba-meu-boi, que ganhou características diversas, sendo incorporado de diferentes maneiras em diversas culturas. Com diferentes nomes ele está presente em diversos estados do país.â€

Se o bumba-meu-boi nasceu no Maranhão, no Piauí ou em outro lugar, pouco importa: é polêmica para mesa de bar – ou para aquelas cervejas tomadas em pé arraiais afora. O que importa são o brilho e a beleza das festas juninas – no Maranhão, no Piauí ou em qualquer canto do país. Maranhenses e piauienses dançando e cantando juntos, embalados no mesmo cordão, é a imagem que me vem à cabeça.

Polêmica por polêmica o saudoso Antonio Vieira, compositor maranhense de primeira grandeza, subido há pouco mais de dois anos, alimentava a de que o carimbó é uma invenção do Maranhão roubada pelos paraenses. Mas essa já é outra história – pra boi dormir?

*Esta matéria foi editada e faz parte da edição nº 2 da Revista Overmundo.

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