Criações coletivas, filmes em desassossego

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Inês Nin · Rio de Janeiro, RJ
8/5/2011 · 14 · 1
 

Novas possibilidades estéticas emergem no cenário brasileiro, chamando a atenção para redes compostas por grupos cearenses, mineiros e cariocas

Fazer um filme pode partir de uma ideia banal; um lapso de história capaz de carregar imagens e sons que, orquestrados, funcionem em conjunto. Ou pode ser também uma obra construída durante anos a fio, detalhada, narrativa, estruturada. Seja como for, é bom que se considere tanto os caminhos já abertos quanto as novas soluções que estão se cruzando na trajetória do cinema nacional, com a criação de grupos e coletivos para a produção de curtas e longas, espalhados por todo o país.

Já faz parte da história os tempos em que filmes necessariamente eram peças caras, a serem feitas vagarosamente, a duras custas e mediante diversas parcerias. O intervalo brusco que interrompeu a produção brasileira durante a era Collor e que culminou com o fechamento da Embrafilme, balançou severamente esse contexto. Mas hoje o chamado “cinema da retomada” já tem mais de uma década.

Começam a aparecer filmes capazes de destoar das referências mais evidentes do que seria uma tradição nacional. Ainda que indiscutivelmente brasileiros, mesclando referências de um mundo globalizado a histórias e modos de fazer tipicamente locais, esses filmes não fazem força para pertencerem a este ou àquele lugar; muito menos para reproduzir complexas fórmulas de produção industrial como outrora.

Com as facilidades de produzir e criar, vindas com as novas tecnologias – câmeras de vídeo digitais em alta resolução, que se aproximam em muito à qualidade da película em 35mm e que superam infinitamente em facilidade e custos de produção; câmeras de celular e diversas outras para os mais variados gostos – novas resoluções e texturas emergiram. Ao mesmo tempo, a internet despontou como fonte primeira para o acesso a um conteúdo antes restrito a festivais, locadoras e, principalmente, à remessa que o amigo do amigo trouxe da sua última viagem ao exterior.

Tudo isso torna possíveis certas experimentações e olhares. Sim, porque devido a essa enorme difusão e troca de conteúdo na web, pôde ter lugar o cultivo de filmes e diretores de linguagens diversas e oriundos de partes do mundo que não participam do mainstream cinematográfico. Marcelo Ikeda fala, não sem razão, em seu recém-lançado livro, junto com Dellani Lima, Cinema de garagem – um inventário afetivo sobre o cinema jovem brasileiro do século XXI, que atualmente o Ceará pode estar mais próximo de Belo Horizonte, das Filipinas ou de Taiwan que da Bahia, quando se trata de cinema.

Não são só as tecnologias, mas todo um contexto gerado por diversas mudanças conjunturais, que torna viáveis empreitadas com praticamente nenhum dinheiro, e que muitas vezes não esperam receber qualquer tipo de incentivo governamental ou de empresas. Ainda que, como toda novidade, essas formas emergentes de fazer cinema ainda não demonstrem inteiramente sua sustentabilidade e não forneçam todas as respostas para o futuro, esse futuro se constrói por meio de presentes desviantes e promissores.

Como diz Cezar Migliorin em seu crucial ensaio intitulado “Por um cinema pós-industrial”, publicado na revista eletrônica Cinética, faz parte da lógica capitalista a estrutura de produção hierárquica, extensa e planejada em seus mínimos pormenores, em que qualquer surpresa ou variação representa um risco ou mesmo uma anormalidade, por não terem consequências passíveis de se prever.

Um novo ambiente, muito diferente deste, floresce mais fortemente desde os filmes de Karim Aïnouz, primeiro Madame Satã e depois O Céu de Suely, irrigado pelo boom de documentários. Assistimos à emergência de pequenos grupos que começam a produzir artesanalmente seus filmes, e não somente curtas, mas – e a surpresa – também longas!

Antes deles, é importante lembrar, um cinema nacional vinha se fortalecendo por outros caminhos, em grande parte pela crítica, que formou sólidos grupos atuantes por meio de revistas eletrônicas e também de cineclubes. Faz sentido pensar que essa movimentação vinda de muitos lados – universidades, cineclubes, festivais, sites e revistas de crítica e de uma crescente produção de curta-metragens, em grande parte identificada com realizadores que assinam sozinhos ou em duplas – possa ter motivado a criação de grupos ou coletivos que produzem de forma independente e colaborativa.

Um grupo de realizadores, em especial, tem chamado a atenção em festivais e mostras pelo Brasil e no exterior por sua próspera produção nos anos recentes, o Alumbramento. São cinco longas finalizados – sendo um de fato uma reunião de curtas em torno de um tema, chamado Praia do Futuro – e 29 curtas, feitos entre 2007 e 2011. A produtora, grupo ou coletivo Alumbramento teve origem na primeira turma do extinto projeto Escola do Audiovisual, formação com duração de dois anos promovida pela Prefeitura de Fortaleza a partir de 2006.

O curso, pensado em formato inovador, com professores diferentes trazidos a cada semana de várias partes do país, teve problemas de verbas logo no começo de 2007. Em tempos em que não havia ainda o curso de Cinema e Audiovisual na Universidade Federal do Ceará, iniciado em 2010, a ameaça de interrupção motivou uma ocupação feita pelos alunos durante duas semanas no local onde eram ministradas as aulas, de maneira a garantir que continuariam.

Findo o curso, foi formada a Alumbramento. O que de mais importante notamos naquela que mais tarde viria a se tornar uma produtora de fato, é a aparente ausência de hierarquia entre seus membros, que chamam a si mesmos de “família” e trabalham frequentemente uns nos filmes dos outros, alternando funções de acordo com o projeto. Os filmes da Alumbramento são tão diversos quanto podem ser as ideias de seus membros; não existe unidade organizada que determine uma orientação estética específica. Mesmo assim, como todo grupo de amigos que se reúne em torno de ideias e vontades comuns, é possível notar semelhanças, ainda que porventura vagas, entre um filme ou outro, além de diálogos estabelecidos com os trabalhos de outros cineastas. Eles têm em comum o modo simples de produzir, o experimentar e os mesmos filmes e diretores como referência.

Outros grupos têm surgido pondo em prática formatos parecidos, como a Teia, baseada em Belo Horizonte, ou até a Duas Mariola, de Felipe Bragança e Marina Meliande, do Rio de Janeiro, ainda que nesta última o grupo de amigos – somente seis, mais alguns parceiros – mantenha em geral mais ou menos fixas as funções de cada um dentro dos filmes.

Entre sua produção, é possível citar alguns filmes que ganharam destaque recentemente, primeiro pela Mostra de Tiradentes, em janeiro desse ano, e mais tarde na Mostra do Filme Livre, que se estendeu ao longo do mês de março. Estrada para Ythaca, de Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti (Alumbramento); Desassossego – filme das maravilhas, obra coletiva composta de fragmentos com diversos diretores, em projeto concebido por Felipe Bragança e Marina Meliande (Duas Mariola, com Teia, Blum Filmes, Alumbramento, Filmes do Caixote, Karim Aïnouz, Gustavo Bragança, Arissas Multimídia); O Céu sobre os ombros, de Sérgio Borges (Teia); Os monstros, de Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diogenes e Ricardo Pretti (Alumbramento), dentre outros, compõe esse rol bem diverso de filmes que têm ganhado atenção.

Não se pode dizer que os trabalhos abordem, diretamente, qualquer questão política evidente. Não são nem de longe panfletários e sequer tratam de assuntos grandiosamente históricos – muito pelo contrário. “Deve haver algo de sintomático de um estado das coisas nesses filmes que abandonam a construção de grandes narrativas, vontades de simbologia e preferem se recolher ao mínimo, à narração do quintal ao invés do país, nessas sinopses de uma única linha. O mundo é possível demais, múltiplo demais. Ideologias não servem, políticas não satisfazem, teorias e instituições não dão conta. Diante disso, resta se recolher às suas certezas mais acessíveis: eu, minha casa, minha rua, meus amigos e parentes”, diz Affonso Uchoa, no catálogo do Cineclube Curta Circuito, de Belo Horizonte. “Um cinema que, por trás de toda a ternura de suas imagens, revela um certo desalento contemporâneo: as câmeras tentam agarrar cada pequeno momento, como se, diante de tudo, só nos restasse nos abraçar, silenciosamente.”

Ofuscando a melancolia impressa nessas palavras, Felipe Bragança escreveu dois textos publicados recentemente – “Óvnis, fantasmas e cinema” (O Globo, Caderno Prosa &; Verso, 26 de junho de 2010) e “Meu último texto de cinema”, que aparece encurtado na versão online do mesmo caderno (12 de março de 2011) – defendendo um escopo bem maior de filmes possíveis que começa a existir e ganhar espaço hoje. Para ele, ao invés de procurarmos um cinema coeso, de podermos falar em “cinema brasileiro” querendo compreendê-lo em sua integridade, ou ainda de cobrarmos dos filmes que atendam às nossas expectativas de olhares viciados, podemos procurar ver os novos “monstros” que ganham vida, ousados e imperfeitos, mas belos!

A cautela excessiva, ou, pior, a crítica que poda mais que estimula à criação, buscando os filmes “certos”, efeitos precisos e cobrando até mesmo um distanciamento histórico para que se possa falar do que vê em volta, limita mais do que expande, cobrando contenção. É louvável que se procure reconhecer os próprios pés, percorrer os próprios caminhos e encontrar confluências, formando redes que possam se diferenciar de suas antecessoras. Sem assumir para si os perigos, e sem agarrar as oportunidades de um cenário emergente, corre-se o risco de virar cinza. E nem pó: cimento, que engessa a terra fértil por baixo dos pés.

*Esta matéria foi editada e faz parte da edição nº 1 da Revista Digital Overmundo.

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Makely Ka
 

Oi Inês, muito interessante essa relação entre os coletivos em Minas, no Ceará e no Rio. Há relações curiosas e improváveis também entre cenas e coletivos musicais em alguns estados e alguns pontos de convergência com a nova produção cinematográfica nesse sentido mais amplo de não seguir linhas de influência muito palpáveis.
Bacana o artigo, me instigou a escrever também!
Abraços

Makely Ka · Belo Horizonte, MG 17/5/2011 13:32
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