Homem do barro

Pedro Rocha
Antônio Cunha e suas cabeças.
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Pedro Rocha · Fortaleza, CE
29/10/2006 · 93 · 1
 

Ali está uma coluna acimentada com dois São Francisco incrustados - um pelo meio, outro no topo - olhando para a Igreja que lhe dá as costas, mas nada de desavença, apenas pelo motivo das imagens e a igreja estarem no alto de um monte, em Canindé, olhando daqui a cidade, segundo maior destino de romeiros no Ceará, perdendo apenas para Juazeiro do Norte de Pe. Cícero.

Por trás dos São Francisco, uma casa. Quando você entra, passa por uma sala que lhe dá acesso a um quintal inclinado, e quando se desce uma escadinha, encontra a verdadeira morada, com fogão, uma varandinha e no dito quintal um forno de tijolo e barro, para o serviço de queimar um pote, uma cuscuzeira, uma imagem de São Francisco ou essas estranhas cabeças tortas de nariz grande, orelha deformada, olhos esbugalhados e boca que ora tenta gritar, ora é sorriso contido.

Professor Gilmar de Carvalho, do curso da Comunicação Social da UFC, chegou ali ano passado e parou quando viu a tal coluna de alvenaria com as duas imagens de São Francisco. Entrou e foi ver quem era o homem que tinha feito aquilo, ainda não escultor, artista ou outras palavras que damos às coisas quando começamos a entendê-las. “Ele começou a dizer que havia potes, panelas, mostrou algumas dessas peças que ele fazia pra vender e também pra usar na casa dele. Disse que um dia resolveu fazer um São Francisco e botou esse São Francisco na porta da casa dele e quebraram a imagem. Então resolveu numa remontagem de São Francisco incrustá-lo na alvenariaâ€, conta Gilmar.

Hão de dizer com propriedade que São Francisco, mesmo de barro e não de gesso, é só o que tem, tanto em capital como interior. É verdade, sim o é, mas o de Antônio Cunha é diferente, às vezes tem dente... “São Francisco ali rapaz, eu sonhei fazendo ele, aí veio um caba aqui chegou e disse ‘rapaz eu nunca vi São Francisco de dente’, mas naturalmente que ele pussia dente.â€... Às vezes é só a cabeça, sem pescoço.

“Enjoei de fazer os potes que é um bicho pesado. Aí peguei e fui fazendo as cabeças de São Francisco, aí eu disse agora eu vou fazer é de gente mesmoâ€, fala Antônio quando perguntado sobre o início da feitura dessas cabeças. “Eu não posso ver nada, eu tô bem aqui, se eu vejo uma coisa aculá eu vou direitinho fazer, vou bater lá e faço tudo. Essa é um meninozinho que morava ali, era mesmo que tá vendo ele. Ele era até meio abestadinhoâ€, fala pegando uma das cabeças.

Gilmar se impressionou principalmente com as cabeças ordinárias deformadas. Conta que na primeira visita elas ainda tinham pescoço. Já na segunda, Gilmar reparou a falta do pescoço que servia como sustentáculo e que dava melhor visibilidade às peças. Também percebeu maior deformação.

O professor aponta que a deformação do nariz principalmente vem sendo construída historicamente como um dos elementos que trazem comicidade. “Quando mais deformada a peça melhor. E essa deformação claro que não se dá só no nariz, ela se dá também nas orelhas, nos olhos, mas a peça pra fazer rir tem que ser deformadaâ€, diz Gilmar.

Mas para quem rir, já que as peças até a chegada do professor, não estavam expostas em nenhum lugar e nem mesmo à venda como diz o próprio Antônio Cunha?

Ao segurar uma peça Antônio passa os dedos pelos contornos do nariz, olhos, boca, e revela uma grande satisfação de fazer as cabeças, numa produção que tem muito a ser desvendada, para quem o quiser, mas que tem algo de primordial, de simples, de alguém que faz algo sem saber direito o quê e como. Cunha não domina nem as técnicas de acabamento, nem do controle do forno. Várias de suas peças, principalmente as maiores, quebram ou saem queimadas.

Na fala, informações que às vezes se confundem, dizendo ter começado a trabalhar com o barro há 4 anos apenas, em outro momento dando a entender um tempo maior de experiência.

Seu Antônio Cunha já completou os 88 anos, que começaram em Itatira, passaram pelo sertão de Santa Quitéria até Canindé. Lavrador, homem da roça de formação humilde, da fala simples, alguém que sabe que é pouco no meio das coisas, que talvez seja temente a Deus, mas mostra uma intimidade tanto com Nosso Senhor, quanto com São Francisco, como quem que põe a mesa para a ocasião de visita do amigo.

Quando acorda às 6 horas da manhã, vem, abre a porta, faz o sinal para igreja e para as duas imagens que ficam do lado de fora. Confere se não aconteceu nada a elas e entra pra tomar o café. Conta: “Eu tava ali na minha rede, aí a muié me chamou pra eu almoçar, aí eu disse vô já. E ela disse: ‘Desata a rede’. Não vou desatar a rede não, quando eu der fé, não sei se eu tô pecando, pode ser que nosso senhor vai e se deita nela cansadinho...â€

De São Francisco se valeu em duas ocasiões. A primeira quando “eu escapuli de um telhado mais alto que aquela igreja assim, numa distância assim de quatro quilômetros de cabeça abaixo. Eu ia morrer em cima de pedra dessa grossura. Anoiteceu, era 12 horas, anoiteceu pra mim, eu com um facão na mão, com as alpargata noutra, ai me vali de São Francisco, cai lá embaixo, bem devagarzinho, não houve nada comigoâ€, conta Antônio, que estava em uma caçada de catitu - porco do mato -, na Serra do Céu, no município de Canindé.

A outra foi pra parar com a mania de beber uns golinhos de cachaça. “Deixei de tudo, tenho nojo da catinga da cachaça. Ave Mariaâ€. Hoje, passa o dia na função de amassar o barro, modelá-lo e levar ao forno, mas sem pressa, devagarzinho, como ele mesmo ressalta. Só não trabalha de noite, que faz mal pra vista.

Obrigado seu Antônio. “De nada biximâ€.

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gilmar de carvalho
 

Seu Antonio é pura emoção. Ele faz uma arte "bruta" que nos deixa boquiabertos. Como é capaz de transmitir tanta informação em um pedaço de argila?
Gilmar de Carvalho

gilmar de carvalho · Fortaleza, CE 11/2/2007 16:56
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Antônio Cunha em seu quintal. zoom
Antônio Cunha em seu quintal.
Antônio Cunha em frente São Fransciso incrustado... e o repórter... zoom
Antônio Cunha em frente São Fransciso incrustado... e o repórter...
Antônio Cunha e uma de suas cabeças mais deformadas. zoom
Antônio Cunha e uma de suas cabeças mais deformadas.

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