Línguas em português: o português macarrônico

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Aquinei Timóteo · Rio Branco, AC
13/2/2008 · 64 · 2
 

Línguas em português: o português macarrônico em Adoniran Barbosa e Antônio de Alcântara Machado

O aspecto social da língua é fato já bastante afirmado e reafirmado no interior dos estudos lingüísticos. Devido ao seu caráter estratificado ela consegue abarcar um grupo variado de falantes e de usuários da língua, reunidos por intermédio de trocas intersubjetivas, sígnicas e materiais que permitem a construção dos espaços políticos de comunicação e de identidade.
Eric Landowski, em seu livro “Presenças do outro”, aponta que a definição da identidade passa também pela aceitação de uma alteridade:

Com efeito, o que dá forma a minha própria identidade não é só a maneira pela qual, reflexivamente, eu me defino (ou tento me definir) em relação a imagem que outro me envia de mim mesmo; é também a maneira pela qual, transitivamente, objetivo a alteridade do outro atribuindo um conteúdo específico à diferença que me separa dele. Assim, quer a encaremos no plano da vivência individual ou da consciência coletiva, a emergência do sentimento de “identidade” parece passar necessariamente pela intermediação de uma “alteridade” a ser construída. (LANDOWSKI, 2002, p. 4)

A língua é um signo social e, nesse sentido, consegue aglutinar múltiplas variações lingüísticas utilizadas por diversos grupos distintos. Como a língua portuguesa apresenta uma grande heterogeneidade, conforme bem destacou Marcos Bagno, em “O preconceito lingüístico”, podemos observar que no Brasil, as diferenças regionais no uso da língua são bem caracterizadas e claramente definidas. Isso pode ser percebido pelo “chiado” no falar do carioca e do amazonense, pelo sotaque típico dos nordestinos ou mesmo pela influência de imigrantes – fato constatado na cidade de São Paulo – onde é grande a presença de italianos e seus descendentes. Também na fala dos gaúchos, que mantêm estreitos contatos culturais com seus vizinhos argentinos e uruguaios é patente a recorrência aos castelhanismos. Percebe-se com isso que a variabilidade lingüística em nosso país, passa também por um processo de maturação identitária. O nordestino se identifica com os signos utilizados em sua fala, assim como o carioca, o paulista, o maranhense e o gaúcho se identificam com os seus signos – contudo, o que os define não é a semelhança, mas as diferenças.

O que acontece é que em toda língua do mundo existe um fenômeno chamado variação, isto é, nenhuma língua é falada do mesmo jeito em todos os lugares, assim como nem todas as pessoas falam a própria língua de modo idêntico. (BAGNO, 2004, p. 52)

A língua portuguesa em sua variante paulistana, por exemplo, apresenta grandes semelhanças com a prosódia da língua italiana e isso se deve a fatores históricos. No período entre 1880 e 1930 o Brasil e a Europa passavam por grandes transformações. Lá, o alto crescimento da população e o acelerado processo de industrialização afetaram diretamente as oportunidades de emprego no continente, o que resultou numa intensa fuga demográfica da Europa. Aqui, o país estava passando por um período de fermentação das idéias abolicionistas. A Lei Eusébio de Queirós (1850) marcou o início do processo de abolição, proibindo o tráfico negreiro. A partir deste momento, começa a faltar mão-de-obra nas zonas cafeeiras. Ao mesmo tempo, surge no oeste paulista um grupo de fazendeiros de origem burguesa que defende o uso da mão-de-obra livre nas plantações de café. Nesse primeiro momento os italianos vão atuar nas grandes fazendas de café. Os imigrantes se concentraram principalmente na região sudeste. São Paulo recebeu 70% dos imigrantes italianos e em 1930 eles já correspondiam a 55% da população do estado. A forte presença italiana forjou uma arraigada identidade que se reflete na literatura e na música paulistanas. Nas canções de Adoniran Barbosa podemos observar a presença de uma variante do chamado português “macarrônico”, ou seja, o sambista justapõe traços da língua italiana e portuguesa no mesmo caldeirão e junta tudo isso numa linguagem margeada pela oralidade, pelos vícios e pelos “erros” comuns a camada popular. Essa mistura pode ser percebida na música “Um samba no Bexiga”, de 1956:

Um domingo nóis fumo
Num samba no Bexiga
Na rua Major,
Na casa do Nicola
A mezza notte o'clock,
Saiu uma baita de uma briga.
Era só pizza que avoava
Junto com as brajola.
Nóis era estranho no lugar
E não quisemo se meter.
Não fumo lá pra brigá,
Nós fumo lá pra comê.
Na hora H se enfiemo
Debaixo da mesa,
Fiquemo alí de beleza,
Vendo o Nicola brigá.
Dali a pouco
Escuitemo a patrulha chegá
E o sargento Oliveira falá:
"Não tem importânça,
Vou chamar duas ambulânça.
Carma pessoá,
A situação aqui tá muito cínica.
Os mais pior
Vai pras Crínica.


Nota-se no texto acima alguns indícios do que seria o retrato caricato da fala de uma faixa da população paulistana: os descendentes de imigrantes italianos moradores de alguns bairros, como o Bexiga e o Brás. Isso pode ser percebido nos “erros” de português, pela oralidade com que a música foi construída e pelo tom “macarrônico” do texto.

As “Novelas paulistanas”, do escritor Alcântara Machado, representam também um grande documento acerca da língua portuguesa em sua referência italiana, uma vez que o autor foi bastante fiel à oralidade – revelando sua preocupação em descrever os habitantes e os costumes das pessoas que moravam nos bairros periféricos da capital paulista, o que fez surgir um novo tipo de personagem na literatura brasileira: o ítalo-brasileiro. Das “Novelas paulistanas”, vamos analisar um trecho do conto “A sociedade”.

O capital levantou-se. Deu dois passos. Parou. Meio embaraçado. Apontou para um quadro.
- Bonita pintura.
Pensou que fosse obra de italiano. Mas era de francês.
- Francese? Não é feio non. Serve.
Embatucou. Tinha qualquer cousa. Tirou o charuto da boca, ficou olhando para a ponta acesa. Deu um balanço no corpo. Decidiu-se.
- Ia dimenticando de dizer. O meu filho fará o gerente da sociedade... Sob a minha direção, si capisce.
- Sei, sei... O seu filho?
- Si. O Adriano. O doutor... mi pare... mi pare que conhece ele?


Percebemos no excerto acima que a narrativa segue numa linguagem livre, próxima da coloquial. As características “italianizantes” são notadas no diálogo; assim como na expressão ilustrada pelo uso do português numa variedade lingüística “macarrônica”, muito arraigada à gramática italiana, com influência no vocabulário e nas construções.

Analisando a música de Adoniran Barbosa e o conto de Alcântara Machado, pudemos perceber que a língua desempenha um papel identitário e de reafirmação social. E que o português “macarrônico” é antes uma ferramenta que o imigrante utiliza para se inserir na história do português brasileiro – forjando uma espécie de italiano “abrasileirado”. Isso, aliás, vem ao encontro da proposta de Eni Orlandi (1996, 131): discutir os fenômenos cotidianos da língua, apontando suas diferenças e variações lingüísticas, já que é na língua que se explicitam as contradições, porque “a língua pertence a todos e é, ao mesmo tempo, o que temos de mais propriamente nosso. Lugar de reações à história e ao social e lugar de singularidade.”

BIBLIOGRAFIA

BAGNO, Marcos. O preconceito lingüístico. São Paulo: Loyola, 2004

ORLANDI, Eni Puccinelli (1996). “O Teatro da Identidade – A Paródia como Traço da Mistura Lingüística (Italiano/Português)”. In: Interpretação, Autoria, Leitura e Efeitos do Trabalho Simbólico. Petrópolis. RJ: Vozes, pp. 114 – 131.

BORDENAVE, Juan Díaz. O que é comunicação. 27ª reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 2002. (Coleção Primeiros Passos)

LANDOWSKI, Eric. Presenças do outro. São Paulo: Perspectiva, 2002.

MACHADO, Antônio de Alcântara. Novelas paulistanas. 3 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973. p 27

CD

EIis Regina no fino da bossa. v. 3, faixa7, 11.V030. V3. CD.




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raphaelreys
 

A língua falada pelo povo meu caro Aquinei, é uma expointaneidade da alma ao se manifestar pela fala. A alma éuma centelha da egrégora coletiva e expressa as vontades do inconsciente! Parabéns.

raphaelreys · Montes Claros, MG 13/2/2008 08:08
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FILIPE MAMEDE
 

Matéria muito "bem sacada" Aquinei. O importante é as todas as variantes da língua possam vivem em harmonia. Como se sabe, a língua é uma forma de poder. Um abraço.

FILIPE MAMEDE · Natal, RN 14/2/2008 11:34
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