Na maioria das vezes em que se reivindica a liberdade de imprensa, sempre me pergunto o que é a liberdade e o que significa a imprensa. Depois de muitas conjecturas e, após uma pequena análise sobre as práticas de informação cometidas pela nossa midiática mÃdia, parece-me que o que se quer é que a liberdade aqui seja aceita como um poder absoluto que emana de um acordo entre o editor e os donos do veÃculo de comunicação (sic) e, obviamente, abençoado pelos patrocinadores. Como desdobramento, a imprensa, para além de se reduzir ao objeto impresso, torna-se um mecanismo de imprimir “verdades†ideológicas na página branca dos desavisados e da burrice (com todo o respeito aos burros) funcionais.
E, para imprimir essas “verdades†no universo de um público leitor imediatista, avesso à pesquisa e incapaz de interpretar um texto, os meios de comunicação utilizam-se de uma falácia, a da autoridade, ou seja, socorre-se de algum colecionador de tÃtulos acadêmicos para justificar o seu discurso ornamental.
Quando – a partir da tal liberdade de imprensa – se abre uma coluna para algum especialista em moda, marketing, empreendedorismo, logÃstica e outras baboseiras do gênero, nem há muito com o que se preocupar, considerando que não passam de discursos em si mesmos e a partir da idéia de um mundo morto, pronto e acabado, onde o único que resta é vender coisas para os embriagados da necessidade consumista. Mas quando este espaço é dado a um formador de opinião, uma pessoa a quem a sociedade considera um estudioso das questões culturais e que, inclusive, o autoriza a falar em nome de um povo, faz-se necessário algumas reflexões mais responsáveis e comprometidas com o senso crÃtico.
Refiro-me à entrevista de domingo, 15/04/2007, em A Gazeta, de um antropólogo (melhor que o rótulo seria conjugar o sentido de antropo + logos), ultimamente muito requisitado no EspÃrito Santo. Apesar deste espaço não ser o suficiente para dar cabo ao tema em questão, atenho-me apenas a algumas observações sobre o que o entrevistado em questão afirma ao longo da referida entrevista. Num certo sentido, soa irônico quando justifica a “estabilidade econômica†como causa para o aumento da violência. Primeiro, porque confunde o econômico com o financeiro. Depois, dissocia o econômico do polÃtico e, ainda, parece desconhecer a diferença entre o exercÃcio da individualidade e o culto ao indivÃduo, ou seja, o individualismo. O individualismo (ou o ato do indivÃduo cultuar-se a si mesmo) não é outro que a própria negação do indivÃduo enquanto tal, considerando que a humanidade se divide entre dominantes e dominados, por condição geográfica, social, credo, etnia, etc e, o indivÃduo, trata-se do indivisÃvel, ou seja, da menor parte do coletivo. Assim, o indivÃduo, no pleno exercÃcio da individualidade, se dá como uma parte do coletivo que se realiza através dele. Isto posto, o termo “identidade individual†se torna duplamente absurda, principalmente, ao se considerar que identidade tem a ver com o idem, o que se identifica e pode ser identificado com e num determinado grupo. Ainda, a idéia de a “estabilidade econômica†como causa para o aumento da violência, lembra o senso comum que “ser igual não tem graçaâ€. Resta lembrar que na cultura dos povos guarani, yanomami, mapuche e tantos outros, é justamente a “estabilidade econômica†(entendida aqui como cultura) que garante a paz entre seus membros.
Depois, o que é ainda mais estarrecedor é ouvir de alguém a quem a imprensa atribui o mérito de um dos mais conceituados intelectuais do paÃs, com direito a interpretar o Brasil, afirmar que “temos uma escalada de violência brutal porque não temos polÃciaâ€. Quando os que têm nas mãos o poder de “interpretar†a sociedade apresentam como solução para o povo a polÃcia, significa que não existe mais nada para se fazer ou, por outro, quer dizer que há um acordo de cavalheiros para a manutenção da sociedade tal como ela é, ou seja, uma conveniência de que a mesma é perfeita, que não precisa ser mudada e que apenas alguns são defeituosos e que, nesse caso, deve-se organizar os instrumentos de vigilância e aprimorar os meios de correção para os que atrapalham o bom andamento do melhor dos mundos possÃveis.
Outro nó do discurso é que o mesmo continua monótono e conseqüente no seu percurso liberalizante, quando o entrevistado acredita que o Estado respondeu bem à área econômica, mas ao mesmo tempo se refere ao Governo como se este fosse autônomo, como se o mesmo gozando da onipotência tivesse poder de decisão sobre todas as questões construÃdas ao longo de cinco séculos. O Estado não passa de um instrumento a serviço das classes que dominam. É mister a noção de existência de um processo que – por mais que se queira “revolucionário†– se mantém refém e engessado pela infra-estrutura do capital e, obviamente, nutrido pela superestrutura do mesmo. Criticar o estado de coisas de um modelo de Estado sem mexer na espinha dorsal da sociedade é como querer que nasça a ave sem quebrar o ovo ou, quem sabe?, humanizar o carrasco mesmo admitindo que ele continue torturando mudando apenas as táticas.
Trata-se de um discurso de classe média e, esta, por sua própria condição, exerce o papel da mediocridade, no sentido de ser mediadora entre os interesses de classes. Mas – apesar do caráter hegemônico de uma sociedade dividida em classes, onde o pensamento das classes dominadas é o pensamento das classes que dominam, grosso modo, tanto as classes altas quanto as classes baixas, nas devidas proporções, têm as suas posições, ao passo que a classe média não tem identidade e, diga-se de passagem, é justa ou injustamente ela quem fornece a munição para o poder que exercem as classes altas contra as classes baixas. A classe média é tão dominada quanto as menos favorecidas, mas ela está muito mais identificada com as que dominam e reproduzem os mesmos valores dos dominantes, desde os cargos que ocupam como bobos da corte ou idealizadores do sistema. É por esse motivo que a classe média critica os dominantes, não por uma consciência na luta de classes, mas porque reivindica – não um direito – mas privilégios. Por isso são moralistas no pior sentido da moral.
O que mais incomoda é saber de um antropólogo, suposto pesquisador portador de mÃnimo conhecimento, comungar com o lugar-comum dos alto-falantes da hipocrisia. Por um lado, a defesa da redução da maioridade penal, numa alegação que se alguém pode votar aos dezesseis anos também pode ser criminalizado e, por outro, a idéia de que se se pode votar aos 16 anos também pode ser candidato. Há muita confusão para pouco espaço de discurso. Uma coisa é um adolescente ter consciência de suas necessidades e tentar identificar a possibilidade de suprir seus sonhos ou carências a partir de propostas de governo ou candidaturas. É dizer que, “compreender o cenário polÃtico brasileiro que, convenhamos, não é fácil de ser compreendidoâ€, não se trata de um entendimento do absoluto, mas de uma maneira desta faixa etária se inserir no mundo e, ao mesmo tempo, colocar em questão o lugar do olhar do mundo que se constrói na vivência. Outra coisa é esse mesmo adolescente ser penalizado ou criminalizado antes mesmo de ter a oportunidade de se fazer presente num momento de decisão sobre as condições de estar num mundo em construção e que, até então, não o conseguiu dar oportunidades. Quanto uma outra questão colocada pelo entrevistado, é o seguinte: “se você pode votar, por que não pode ser candidato?â€, cabe refletir sobre a diferença entre votar e ser votado. Embora a questão não se esgote aqui, podemos citar alguns exemplos de comportamento para ilustrar essa espécie de aporia. Como ser humano e cidadão posso ter a plena consciência do que é melhor para o meu bairro ou minha cidade e, ao mesmo tempo, saber que esta consciência não significa que eu reúna as condições necessárias para ser o prefeito de uma cidade. Posso, aos dezesseis anos de idade, analisar e optar votando por um partido ou num candidato que esboça um projeto polÃtico que me é oferecido onde eu me sinta contemplado de acordo com a minha capacidade de compreender o mundo, mas isso não quer dizer que eu esteja apto a legislar ou governar para o conjunto da sociedade.
Conforme a apresentação que a imprensa faz do perfil do entrevistado, inclusive, colocando-o como “influenciado pelo historiador francês Charles Alexis Clérel de Tocqueville (Verneuil-sur-Seine, 1805 – Cannes, 1859), fica mais fácil entender a postura do entrevistado. Mas isso não implica em concordar com ele. É dizer que, a visão polÃtica de Tocqueville, desde quando deputado, em 1839, ou como constituinte, em 1848 e, ainda, como ministro do presidente da república eleito da França, LuÃs Napoleão Bonaparte, era liberal. Herdeiro do pensamento jusnaturalista e do contratualismo, tendo como questão de fundo a idéia de harmonizar igualdade com liberdade, em nome de uma democracia, Tocqueville se deparava com dois fantasmas. O primeiro, seria o surgimento do que ele considerava uma sociedade de massa e, o segundo, o surgimento de um Estado autoritário-despótico. Defendia como solução tática para os ideais da harmonia entre a igualdade e a liberdade, os cidadãos alertas e ativos em defesa da liberdade e de seus ideais liberais, mas – ao mesmo tempo – como liberal, repudiava o Estado, embora considerasse importante o domÃnio da França sobre a Argélia, como necessidade estratégica para a manutenção de sua grandeza e independência. Qualquer coincidência do entrevistado com Tocqueville é plágio mesmo.
Voltando à estaca zero desta avaliação dos dizeres do entrevistado, ou seja, fazendo uma alusão à liberdade de expressão, não acredito que alguém com um discurso diferente do que foi proferido pelo antropólogo Roberto Damatta teria espaço para se manifestar.
Enfim, isso me faz lembrar do saudoso maestro e poeta Jaceguay Lins, pois numa de nossas divagações a respeito de como o mundo vem sendo interpretado, ele me contou da história de um conhecido seu num determinado congresso internacional de sociólogos, acho que aconteceu no México. O fato é que depois de ouvir um monte de discurso e ter se inscrito para uma falação, Ãlvaro Tucano toma o microfone e pergunta:
“Por acaso, antropólogo é aquele que mede pau de Ãndio?
Wilson Coelho é Bacharel em Filosofia, Mestre em Estudos Literários e Auditor Real do Colégio de PatafÃsica de Paris
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