Um golaço do samba-jazz

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Alexandre Carvalho dos Santos · São Paulo, SP
1/8/2007 · 34 · 0
 

Estava lá Tom Jobim, preso num trânsito, comecinho dos anos 60, quando ligou o rádio, impaciente, procurando um pouco de ordem naquele caos urbano. A música que ouviu então encheu as ruas do Rio de harmonia, trouxe a matemática do som para dar movimento ao que era tédio e aflição. “O que veio foi um piano, lindo, tocado com gosto de menino que descobriu um pé de jaboticabaâ€, comentou o maestro soberano. E o piano era o de Sergio Mendes, sim, o mesmo Sergio que mais tarde faria pastiches de música brasileira para americano ouvir, mas que na primeira metade daquela década era um vulcão de energia criadora, com uma intuição rara na formação de seus conjuntos.

Em 1963, o próprio Tom passaria noites sem dormir à base de café e cigarros acompanhado do moço daquele piano, afinando os arranjos do que seria um dos mais pulsantes frutos da música instrumental ligada à bossa nova: Você Ainda Não Ouviu Nada!, de Sergio Mendes & Bossa Rio, lançado no ano seguinte pela Philips e relançado em CD em 2002 pela Dubas.

Cair de paixão por esse álbum é coisa instantânea, porque logo de saída o ouvinte é atordoado pelos trombones de Raul de Souza e Edson Maciel, o sax tenor de Hector Costita na abertura de "Ela é Carioca", e o que vem em seguida, ritmado pela bateria de Edison Machado, faz querer dançar, correr, pular... tudo o que o trânsito daquela tarde do Tom, pouco tempo antes, não permitiria.

Futuros clássicos da bossa nova, como "Desafinado" e "Garota de Ipanema", ganharam uma roupagem jazzística cheia de vibração, de convite à pista de dança, que a gente fica imaginando como as mesmas canções podiam render interpretações tão diferentes, como as sutis e cálidas desconstruções do violão de João Gilberto.

Aqui também há aquela aura de perfeição do baiano, em que tudo se encaixa à sua maneira, mas nada pode ser mais diferente do que as versões de João e do sexteto de Sergio Mendes para "Corcovado", por exemplo, a sétima faixa do CD. Nesta releitura, a composição de Tom Jobim vira um animado samba-jazz. A delicadeza está lá, seria um latrocínio (se é que seria possível) retirar sua delicadeza, mas a canção ganha o balanço irresistível do Bossa Rio, e os quadris insistem em mexer, mesmo que na cabeça você ainda esteja com a visão castradora do Redentor.

"Coisa No. 2", de Moacir Santos, o homem que passou a impressão, lá fora, de que todo brasileiro é gênio, insinua-se com o coração pulsante do baixo de Tião Neto. Este é apenas o ritual de invocação dos metais, que conduzem a melodia com uma seqüência rápida de sopros, respondendo à aritmética complexa do arranjo de Moacir. E ao assumir brevemente a melodia no meio da canção, o piano de Sergio lembra muito os dribles rápidos das mãos de Dave Brubeck em Take Five, ainda que suas formas de relação com o jazz fossem tão distintas.

O disco todo dá a impressão de que estamos diante de um sexteto de craques que joga por telepatia, com passes de letra, como "Nôa... Nôa...", do próprio Sergio. Em Você Ainda Não Ouviu Nada!, as feras de Sergio Mendes antecipavam na música a formação harmônica do escrete de 70, o time que provaria no México que brasileiro pode ser gênio, sim.

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