A RURAL DE ZÉ E O MOTORISTA INCORPORADO
Raphael Reys
Nos anos tempos de vaca gorda no comércio, Zé Amorim era proprietário do Restaurante Espeto de Ouro. Numa tarde de sexta feira gorda e com o alforje cheio de grana, foi depositar a bufunfa no banco. Para tal empreitada diária, convidava como hábito, o pecuarista José Behur, seu valente compadre.
Esse último, pão duro de natureza, embora milionário por labor e por herança. Recebera do pai, Chico, industrial e fazendeiro às margens do Rio Verde, a propriedade rural, a indústria e rusticidade de viver.
Usa até hoje uma caminhonete 1960; veste calça de brim diagonal, botina testa de touro, camisa de algodão riscado e canivete Corneta, preso na reata da calça. Quando esta na cidade anda em uma velha bicicleta calanga. O bem da verdade, Amorim aproveitada esse ir e vir para o exercÃcio de dois dedos de prosa, já que ambos eram campesinos e, para sua própria segurança.
No clichê do caixa o conhecido funcionário de ambos, ao contar o polpudo montante e por ironia, mostra ao Amorim um cartaz que convidava para fins de semana nas ensolaradas praias de Salvador (BA). Na mÃdia uma morena baiana pomposa.
Vai aà o diálogo: Veja Zé – Você só guardando grana – Trabalhando feito jumento Pega – Aproveita e convida o Behur, que também é rico e unha de fome - Vão curtir uma baiana boazuda, grandona - Tomar uÃsque Cavalo Branco na praia.
Zé retruca: Êita caboclo – Quando eu for, mandarei um retrato para você – Vestido de shortinho pega frango – Bolso cheio de dinheiro – Litro de uÃsque em uma mão - Na outra mão, uma lima* enrolada em uma folha de jornal.
Behur curioso indaga: Não entendi Zé, o porquê de uma lima em plena praia? Amorim responde na bucha: A lima compadre é para amolar a minha ferramenta – Uma baiana dessas só de ferramenta amolada.
Na primeira oportunidade, o Zé Amorim comprou uma picape Rural Willes, nova em folha. Convida o seu compadre para irem a Salvador, pois há anos não via o seu irmão Ataene que por lá era gerente da sucursal da Caterpilar baiana. Esse seu irmão, fugaz e esperto dorme com um olho aberto e outro fechado. Alternando na fase REM.
Como o Amorim assim como os piratas das galeras, tinha a visão reduzida, dado ao implante de um olho de vidro e Behur, ao dirigir, era moroso que nem uma lesma. Contrataram por comum acordo, o famoso motorista Antônio Gaguinho do DNOCS. Esse tinha fama de ser excelente condutor, rápido em viagens e sempre encontrar o objetivo da empreitada. Fosse aonde fosse...
A trÃade de caboclos da roça partiram as 04h30min da matina e a viagem transcorriam serelepes. Já passado de Monte Azul (MG) e entrado na Seara dos Orixás; Antônio fez uma parada brusca no acostamento. Desceu e entrou correndo no mato.
Zé Behur observa: O homem deve ter tido uma dor de barriga compadre. Logo escutaram gritos abafados e saravas vindo do matagal. Amorim disse: Vou lá ver o que está acontecendo. Behur adverte: Não vá não – Bem que o povo comenta que ele dirige incorporado de uma alma – O deixa na sua desobriga.
Logo o motorista retorna olhos esbugalhados, babando e andando meio torto. Algumas horas depois e já parados à porta da casa de Atene, na Capital baiana, Amorim chama o compadre à parte de comenta:
Viu só – Só falei que era para virmos a Salvador, na casa do meu irmão – Não dei endereço nem nada – A tal alma que incorpora nele é que veio dirigindo e nos trouxe no destino – Viemos tão rápido que parecia estarmos em um avião.
E arrematou: Êita caboclo – Essas coisas só acontecem na nossa cidade mesmo – Se contar, ninguém acredita.
Logo que comprou a sonhada caminhonete Rural, raridade da época. O som que saia da descarga era ensurdecedor. Um amigo dialoga com ele: Êita Zé – Parece motor de teco-teco. Ele retruca:
Mandei botar um afunilado para chiar manso na baixa velocidade – Só que ao descer a Rua Dr. Santos vou dar umas aceleradas - Paciente que estiver internado no Hospital São Lucas, na tabua da beirada vai bater as botas de susto.
Em outra viagem com uma carona parenta sua ao volante, rumo ao Rio de Janeiro e, como era medroso pelos perigos da estrada, a toda hora advertiam:- Cuidado com o volante - Maneira o pé, que tá pesado - Vai devagar que eu quero chegar vivo e tomar um banho de costas na praia de Copacabana...
Passando pela divisa de Minas com o Rio, foram parados por uma patrulha da PolÃcia Rodoviária Federal, já que o veÃculo na qual trafegavam, estava a mais de cento e vinte quilômetros por hora.
O guarda que desceu da viatura na visão de Zé Amorim era um verdadeiro gigante. Botas de cano alto, até quase os joelhos, cinturão tipo barrigueira com grandes fivelas de alpaca, roupa preta que nem a cor da morte, pistola 45 na cintura, grandes luvas de couro escuro, mais parecendo o Batman.
O dito gigante foi chegando a passos largos e firmes. Colocou aquela mãozona cheia de dedos na janela do veÃculo e falou com voz de um trovão: Bons dias... Sabedor que aquele prejuÃzo ia terminar no seu bolso, o nosso herói urbano, apontando para a motorista, sua parenta, explodiu:
- Prende ela - Leva pra cadeia - Processa e manda para a penitenciária - Desde que saà de Montes Claros, eu venho pedindo para diminuir essa carreira maluca e nada - Pode prender que eu serei testemunha contra ela no processo. O guarda assustado mandou seguirem em frente.
Três anos de uso, o carro estando ainda espelhado na flanela, conhecido agiota foi até ele e propôs a aquisição do mesmo. Zé, desconfiado falou: Vendo caboclo – Pra você é com o pacote de dinheiro em cima do capô...
Um fato digno a ser citado no inÃcio dos anos 60, o nosso Zé não conhecia nenhuma estrada asfaltada. Fazia a sua primeira viagem na Rural do empresário Moacir. Rumavam para Salvador e já próximo à capital baiana, se deparou com uma pista pavimentada.
Parou o a caminhonete, desceu, agachou, tateou com a mão a beira do capeamento asfáltico e disse jocoso: Êita fita isolante de primeira Moacir...
*Lima. Ferramenta cuja lâmina metálica é lavrada de finas estrias dentadas, us. para, por fricção, polir, desbastar ou serrar um metal ou outro material duro.
Um personagem notável e hilário
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