Variante

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Júlio Canuto · São Paulo, SP
10/12/2006 · 64 · 1
 

São Paulo, segunda feira, oito horas da noite, região central. Saio da aula na faculdade de Ciências Sociais na rua General Jardim e vou até uma papelaria na Cesário Mota para tirar cópia de um texto. Como há várias folhas e apostilas aguardando na fila (ou pilha) sua vez de ganharem um par idêntico, vou passar o tempo no sesc consolação. Continuo pela Cesário Mota, dobro a Consolação e entro imediatamente na Maria Antônia, sigo e entro à direita na Dr. Vila Nova. Entro na sala (que insistem em chamar hall) de convivência e está ainda no início uma apresentação do Edvaldo Santana, o que para mim foi uma boa surpresa. Um bom músico, poeta popular e das popularidades, acompanhado de seu violão e de um outro músico com vários instrumentos de percussão que eram tocados um a um. A uma certa altura da apresentação, o artista fala de quando pegava o trem da linha variante para ir ao trabalho e começa um som meio samba, meio blues que fala deste cotidiano, passando em música pelas estações de Trinidad, Itaim, Calmon Viana, Itaquá, Aracaré , Engenheiro Goulart e Mané Feio. Provavelmente, muitos dos que estão ali nunca passaram por estes locais de parada, morada e descanso. Eu conheço um pouco.

Já ambientado, pego uma revista para saber da programação do mês. Vejo uma matéria que trata da cultura popular frente às novidades tecnológicas e o perigo da massificação, perguntando: sobreviverá a cultura popular?

Continuo ouvindo o Edvaldo enquanto vou pensando: sobreviverá? - sobrevive! – revive! – transforma! Ver o Edvaldo ali, tão simples quanto bom, é uma prova disso.

No entanto, isto ainda não é o bastante. Fico com o tema da matéria na cabeça. Às nove saio, faço o mesmo caminho só que no sentido inverso, pego minha cópia, sigo para a faculdade e, já desencanado da aula onde há uma discussão teórica sobre o capitalismo monopolista de Estado, aceito o convite de um amigo para uma cerveja. Meia hora num papo leve, agradável e levanto, cumprimento – “até amanh㆖ e sigo para a Praça da República onde entro no metrô, depois no trem e depois no meu apartamento, em Itaquera. Outro “Ita†bem distante, assim como Itaquá, Itapecerica etc.

Com o tema ainda na cabeça, lembro de várias coisas, desenvolvo raciocínios durante o caminho. Tenho em minha cabeça que se trata de um paradoxo: de um lado há os que vêem estas novas tecnologias apropriadas neste processo de massificação das culturas transformando tudo em comércio ou vendendo um tipo único, padrão, de comportamento e cultura; de outro, há quem enxergue estas novidades, principalmente a internet, como uma forma de democratização da informação e expressão. Neste último caso, uma das maneiras de viabilização seria o incentivo estatal para ampliação desta participação.

Sem querer entrar na questão de “a quem serve o Estado?â€, digo que é preciso criar formas de ampliação da participação “por baixo†– entendendo o “por cima†como sendo os conglomerados que detêm a maior parte dos meios de comunicação –, estimulando a expressão popular, a cultura popular ou os modos regionais, pois a cultura se faz no dia-a-dia, em nossas experiências, no que temos em comum. A valorização da vida cotidiana é fundamental como estratégia de resistência a possíveis tendências de padronização, pois a troca, o conhecimento das tecnologias só faz as experiências aprimorarem, sem perder sua originalidade e peculiaridades.

Poderia citar inúmeros exemplos em que, mesmo sem acesso às tecnologias, o povo inventou, improvisou e adaptou. O povo é criativo, e não acomodado. Vive numa corda bamba: abre espaços, improvisa, usa do “jeitinho†em meio às condições de vida que lhe é imposta. Imagine este mesmo povo tendo condições reais de participação. A ação dos movimentos populares, neste sentido, mostra-se fundamental.

Assim como o Edvaldo segue pela variante de Itaquá com rap, pagode, salsa, rock, reggae, xote, coco e blues, sigo eu pelas variantes de idéias na observação e vivência das ruas do centro e da periferia. Segue também você seus caminhos variáveis e outro acolá. Todos variando, desviando da estrada massificada e buscando, criando ou reinventando alternativas de percursos a quem nos acompanha. Melhores alternativas, porque reais e vivas.

(publicado no sítio Recanto das Letras e citado no blog Pula o Muro)

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Leonardo André
 

Grande Julio! Tem uma música do Chico Sciencie em que ele fala sobre o maracatu psicodélico, a capoeira da pesada, do bumba pelo rádio, do berimbau elétrico. Quando esse lance das novas tecnologias chegam até a periferia, acredito que ocorre uma espécie de antropofagia, pois tudo isso é incorporado pela nossa cultura e dessa mistura surgem coisas maravihosas como foi o mangue beat, por exemplo. Enfim, o que falta é mesmo o acesso democrático de toda essa revolução tecnológica. Abraço!

Leonardo André · São Paulo, SP 7/12/2006 09:53
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