Barulho para o conhecimento

.joao xavi.
.O quadro onde são escritas as palavras propostas pelo público.
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joao xavi · São João de Meriti, RJ
27/9/2007 · 176 · 1
 

Saí de casa pra acompanhar passo a passo a Batalha do Conhecimento. Catei minha câmera, o boné e parti para a Lapa muito atento. Disposto a não deixar de registrar nenhum momento. E poder relatar no Overmundo cada acontecimento. Calma, esse texto não vai ser todo rimado, não tenho a mesma habilidade que tem esses MC´s dados ao confronto nas rimas. Só quero transmitir aqui um pouco do que acontece nas noites de quinta-feira, quando uma pequena multidão se amontoa para conferir a Batalha do Conhecimento.

A programação da Batalha começou cedo, as 18:30h, com a exibição do filme “Febre de Selvaâ€, do cineasta americano Spike Lee. A saber, o cinema foi um dos mais importantes meios na difusão da cultura hip-hop no Brasil. Além de Spike Lee, que tem em sua filmografia algumas obras que retratam o cotidiano dos guetos de Nova Iorque, podemos destacar também o filme Colors (traduzido aqui como “Cores da violênciaâ€), dirigido por Denis Hopper, com o rapper Ice T no elenco. A exibição de vídeos é uma das propostas que diferenciam esta das outras tantas batalhas que rolam por ai. Por aqui, além de boas rimas, a rapaziada procura algo a mais, o tal do conhecimento.

A primeira rodada das batalhas teve início com a casa meio vazia, a noite contou com um total de dezesseis MC`s duelando no esquema mata-mata, ou seja, perdeu, tá fora. Entre os dezesseis competidores havia pelo menos três estreantes, o que não significa que o nível dos combates tenha sido baixo, pelo contrário. A batalha acaba servindo como um espaço para revelar os novos talentos e projetar essa nova safra pro universo do rap carioca. Afinal de contas, a Batalha do Conhecimento é o evento de rap que mais reúne gente na cidade, além de ser o único que acontece semanalmente.

A tabela da primeira rodada ficou assim:
Nissin X Honey Money
Emissário X Migu
Isac X Rico
Ta ligado X Coba
Bidi X BBLô
Sete X Revis
MV Hemp X Ernesto
Maomé X Tempestadi

Ao final da primeira rodada os MC`s têm um tempo pra dar aquela relaxada. O DJ é quem não pára de trabalhar, continua mandando um som pra não deixar o ritmo da festa cair. Mas nessa noite a programação trazia algo de muito especial, a estréia póstuma do vídeo clipe do MC Catatau. Dois amigos de Catatau, MC Gil e MC Sheep, se encarregaram de apresentar o vídeo contando parte da história da vida do companheiro de rimas. Como muitos dos MC`s que estão hoje fazendo rap e envolvidos com a cultura hip-hop, Catatau também veio da escola do Funk. E, segundo o relato de seus amigos, sofreu as conseqüências de morar em uma comunidade dominada pelas milícias.

O fato é que Catatau foi morto durante as filmagens do clipe. O pessoal da Da Ganja filmes corajosamente finalizou o vídeo que, além de cenas com o próprio Catatau, conta com imagens de telejornais, notícias de conflitos armados em favelas cariocas, corrupção policial e todas essas coisas que infelizmente permeiam o dia-a-dia da cidade. O vídeo foi assistido com muita atenção por todos os presentes que acompanhavam com fervor o refrão da música que dizia: “a primeira lei da favela é ter fé!â€. O vídeo acaba, Gil e Sheep recuperam o microfone para fazer um belo free style em homenagem a Catatau. O MC Zé Bolinho e o b.boy Jagal, falecidos recentemente, também são lembrados.

A segunda rodada já começou quente, a homenagem a Catatau acirrou os ânimos dos MC´s que precisariam mostrar ainda mais criatividade para permanecer na disputa. A rapaziada não deixou por menos, e o público pôde assistir a belos conflitos como o de Rico e Maomé. O primeiro rima em um estilo nervoso, o cara fica visivelmente tenso! O segundo tem o grande trunfo no flow (a levada que o MC dispara as rimas), como você pode conferir na vitória dele na final da etapa carioca da Liga dos MC´s. Aqui, na Batalha do Conhecimento, existe um quadro negro, onde os próprios MC´s e o público escrevem palavras com as quais o MC deve rimar durante sua apresentação. Nesta noite o quadro estava recheado por palavras como desejo, etnocentrismo, embriaguez, religião, entre outras. Apesar de Rico utilizar mais palavras do quadro, nesta ocasião Maomé levou a melhor e se classificou pra semi-final.

Outra boa batalha foi a que ocorreu entre Revis e Nissin, duas figuras novas no cenário, mas que mostraram chegar com muita pressão. Revis aparenta ainda não ter chegado aos 18 anos, Nissin não deve estar muito além desta idade. Juntos os dois abusaram não só do vocabulário proposto no quadro, mas também de referências que levavam o público a viajar, rir e refletir. De Salvador Dali aos automóveis Nissan (resgatado no trocadilho Nissin sem Nissan) tivemos citações a arte, cultura de massa, sociedade de consumo. Toda essa salada acaba fazendo sentido quando esses moleques encaixam as idéias em rimas bem elaboradas.

Nos outros dois confrontos, MV Hemp não encontrou muita dificuldade para superar Migu, já BBlô e Coba levaram o conflito até as últimas conseqüências. Para delírio da platéia a batalha foi decidida no chamado terceiro round. Momento quando o talento dos MC´s extrapola os dois rounds iniciais, obrigando a realização de um terceiro para decisão final. BBlô acabou levando a melhor se classificando para a semi-final, a tabela ficou assim:

Migu X MV Hemp
Rico X Maomé
Revis X Nissin
BBlô X Coba

O cenário onde a batalha acontece lembra uma verdadeira arena, os MC`s ficam num nível a baixo da platéia que se concentra não só à frente, mas também pelas duas laterais. Quando as batalhas começaram a acontecer neste espaço, o público cercava os MC`s em 360°, conforme o evento ficou mais concorrido, foi preciso conter o espaço para não danificar os equipamentos do CIC (Centro interativo de Circo). Equipamentos que, além de utilizados nas oficinas ministradas no local, servem para transmitir a batalha ao vivo através da Rádio Comunitária de Arte e Educação. Se você mora no Rio pode toda quinta-feira sintonizar a rádio em FM103.3, e acompanhar a batalha do aconchego do lar, ao aperto do ônibus.

Antes da terceira fase, rolou ainda o show do grupo Malícia Urbana. Formado por Fael e Kelson, conhecido pelas batalhas que costuma disputar Rio de Janeiro afora. Assistir ao desempenho de Kelson não apenas nas rimas improvisadas, mas também atuando junto ao seu grupo, é mais uma prova da importância da batalha como laboratório artístico. Um espaço onde o MC não apenas exercita a criatividade, mas aprende também a lidar com a platéia, utilizar o microfone e amadurece como artista. A batalha estimula o trabalho autoral dos MC´s adicionando um beat a premiação do vencedor da noite. Para um MC em começo de carreira, conseguir uma batida original significa coçar o bolso, coisa que nem sempre é fácil ou mesmo possível.

Semi-final, duas batalhas: MV Hemp e Revis fazem um duelo bonito, os dois buscam utilizar bastante as palavras do quadro. Em alguns momentos Revis conquista a simpatia da platéia, mas MV Hemp reage bem, vence e segue rumo a final. Maomé e BBlô fizeram mais uma batalha digna de todo barulho que ensurdeceu os presentes. Amigos, amigos, rimas à parte, foi a batalha onde houve mais confronto entre os MC´s. Apesar dessa não ser a proposta principal da Batalha do Conhecimento, é de sangue verbal que o povo gosta. Sendo assim, Maomé levou a melhor no quesito sanguinário e conquistou a última vaga na final.

O relógio já passava das 22h quando a final entre MV Hemp e Maomé começou. Seria essa uma batalha da experiência contra a juventude. Maomé mais uma vez disparou seu gatilho de rimas, usando e abusando de seu flow rápido, costurando idéias contundentes em alta velocidade. Mas na hora da decisão o que pesou foi o carisma de MV Hemp que, malandramente, aproveitou do clima de excitação geral que dominava a arena e partiu pra cima da platéia: “Muita positividade no ar! Quem ai ta com o pensamento positivo, levanta a mão e vem comigo!â€. Ai o povo ficou doido! MV Hemp encarnou o verdadeiro papel de MC (Mestre de Cerimônia) e trouxe o público juntinho com suas rimas. Vitória merecida do senhor Marcos Vinicius Hemp. O grande campeão da noite levou pra casa um boné, uma camiseta, todo dinheiro arrecadado da platéia, o beat oferecido pelo DJ Mister Break, e a honra de apresentar a batalha da semana seguinte.

Semana após semana a Batalha do Conhecimento vai juntando gente, dando voz aos MC`s e criando uma tradição que se encaixa no campo das tradições que se instalam para o bem. Uma tradição que, em última instância, nos remete ao direito e a maneira mais antiga de se fazer política. Por aqui, é o uso da palavra, junto ao barulho, a manifestação pública, que define os rumos deste embate.

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Thiago Camelo
 

Estou me programando pra assistir a uma batalha, João. Me diz uma coisa, vc, que é rapper, já participou de alguma batalha? Acho muito impressionante. Vejo várias no Youtube. Há uns 3 anos, vi um filme no Festival do Rio chamado Freestyle, sobre o universo das batalhas lá fora. Nem chegou a sair aqui. É bem legal, lá a coisa é levada muito a sério. Muito. Abração!

Thiago Camelo · Rio de Janeiro, RJ 28/9/2007 13:25
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.MC BBlô na arena da batalha. zoom
.MC BBlô na arena da batalha.
.Revis enfrentando Nissin. zoom
.Revis enfrentando Nissin.
.MV Hemp ao lado do quadro. zoom
.MV Hemp ao lado do quadro.
.Kelson, do Malícia Urbana. zoom
.Kelson, do Malícia Urbana.
.MC Little passa o boné para recolher a grana. zoom
.MC Little passa o boné para recolher a grana.
.MV Hemp levantando a galera. zoom
.MV Hemp levantando a galera.

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