O trilinguismo malabarista na linha da fronteira do Brasil com o Paraguai gerou o nhengatu
“Sou nascida, criada e malcriada na fronteiraâ€, ri Elizabeth Villalba. Aprendeu o guarani no berço paraguaio, espanhol na escola e português na rua. ;Para sobreviver, né? Porque a maioria dos meus clientes é de brasileiros†explica. Dona da cantina La Frontera, nome sugestivo para quem está situada exatamente na linha internacional (a fronteira entre Ponta Porã e Juan Pedro Caballero), Elisabeth já morou na Argentina e Espanha e se encanta com os tons dos idiomas que fala. “A mi me suena bueno, como portugues tambien, que es distintoâ€, emenda em castelhano. Ela atende os turistas que vão fazer compras no paÃs vizinho, em busca de preços mais baixos graças aos impostos irrisórios.
Além do nhengatu, a poliglota Islene Mabel Lopez encontrou um jeito de aprender inglês. Já para a vendedora Priscila Aguilera o trilinguismo soa tão natural que não percebe quando mistura, mesmo quando decide falar um de cada vez. “Só percebo pela cara do cliente, de que não está entendendo nadaâ€, diverte-se.
O sentimento de dupla nacionalidade só é resolvido em pensamento. “Eu me considero fronteiriça, mas penso em castelhanoâ€, conta a paraguaia Nidia Alcaraz. Casada com brasileiro, a atendente de caixa em loja de importados Nidia aprendeu em casa os três idiomas, conseguiu o emprego por ser trilÃngue e sente-se obrigada a passar o legado aos filhos brasiguaios. “Eles dependem de mim para aprender os idiomas, é fundamental para viver na linhaâ€, completa.
Nome também dado à moeda paraguaia, o guarani é uma das lÃnguas oficiais do paÃs vizinho, ao lado do espanhol, e circula em duas vias. Ora é lÃngua chula, de Ãndios pedintes, ora é falado como o orgulho da nação. O castelhano e o português são compreendidos de ambos os lados, mas, tÃmidos, os moradores de Ponta Porã (MS) e Pedro Juan Caballero (Paraguai) não admitem falar o idioma do outro por vergonha de falar errado. É esta é apenas uma das peculiaridades da fronteira.
Como não se escreve em nhengatu, é preciso estar com os ouvidos atentos para perceber o momento tênue em que os idiomas sobem no picadeiro e trocam de malabares. Nhengatu se vivencia. É presenciado pela transição perfeita dos três idiomas. Natural, rápido, mutante, os idiomas costuram um diálogo rápido como, por uma sinfonia, onde cada instrumento tem o momento certo de entrar na música e, somente músicos e um maestro invisÃvel conhecem a ordem, o tom e a melodia. Às vezes, a nota é tocada em português e, se desafina a corda em guarani, sempre tem o castelhano para remendar a conversa.
Lê-se nheêngatu, que significa “falador, fofoqueiroâ€. Falador para contar piada, para rir do turista que se perde nos meandros das lÃnguas, para negociar com os clientes. Fofoqueiro para se divertir à custa dos outros, para confidenciar uma novidade. Para explicar exatamente a multiplicidade do que sente em expressões que não cabem em um idioma, divide-se em três.
A fronteira se apresenta mista, com pai paraguaio, mãe brasileira e filho “internacionalâ€. Dos dois lados, sotaques e semblantes arrastados que indicam a mesma origem ou, pelo menos, origens próximas. A chipa, o tereré e o sotaque cruzaram a linha internacional, mas muito ainda desses povos permanece separado pelos quarteirões adentro de cada cidade. Em Pedro Juan Caballero, o estilo próprio de cidade pequena paraguaia impera com a arquitetura de influência espanhola e ruas de pedra. Um botequim oferece empanada de chilenita, uma espécie de pastel com recheio de carne moÃda, ovos e uva passas, temperada com pimenta e gosto adocicado. Muitos moradores vêm do interior para vender verduras frescas na feira local. No hablan portugues de todo, a veces ni tampoco castellano.
Do outro lado, no Brasil, à mesma distância da linha, o guarani já não é ouvido e o morador demonstra esforço para compreender o castelhano. À medida que se distancia da fronteira de ambos os lados, ela parece suja, feia, perigosa. Uma vez ali, percebe-se a riqueza das mesclas e entende-se porque o nhengatu escolheu a fronteira para vivir. Ele só sobrevive neste burburinho, entre os camelôs, as bugigangas e os infinitos ambulantes que oferecem de tudo. De tudo.
“Estrangeirismosâ€
Resultado da criatividade de moradores de paÃses vizinhos, o nhengatu foi a solução encontrada para o convÃvio entre os fronteiriços. Vizinhos que, metaforiacamente, atravessam a rua para pedir uma xÃcara de açúcar, encontram infinitas maneiras de se fazer. O nhengatu permite que paraguaios e brasileiros mantenham a identidade, negociem com o cliente e não se percam com a linha transitória e invisÃvel de fronteira.
Na fronteira também se usam três moedas. Os preços dos produtos são cotados em dólar, paga-se em real convertido e se pode aceitar ou não o troco em guarani. Como Ponta Porã é habitada desde o século XIX, ao se tornar ponto de descanso para viajantes, a fronteira desenvolveu um pólo comercial para esses cidadãos em trânsito e, depois que a exportação da erva-mate decaiu, a venda de produtos importados na década de 1960 reergueu a região. Dona do maior erval nativo já encontrado, a região exportava a iguaria que aquecia as guampas sulistas, argentinas e paraguaias – espécie de cuia feita a partir de chifres bovinos. Ãcone, bebida quente ou gelada, por causa da influência indÃgena e as altas temperaturas no verão, o tereré (gelado) e o mate (ou chimarrão) se instalaram junto aos costumes de quem ia e vinha.
O limite entre os paÃses foi firmado em 1494, pelo Tratado de Tordesilhas, que dividiu o mundo entre Espanha e Portugal. Somente em 1777 é que a primeira linha limite foi estabelecida. O próximo marco histórico é em 1865, quando o exército paraguaio, liderado por Solano Lopez, invade o Brasil, na esperança de conseguir uma saÃda para o oceano. Começa, então, a Guerra do Paraguai. Perdedor na batalha, o paÃs tem as terras confiscadas pelos inimigos. O que antes era Paraguai foi agregado à s terras da provÃncia de Mato Grosso.
Do lado de cá, Ponta Porã, do lado de lá, Pedro Juan Caballero. As duas cidades dividem o lucro e o preço de serem irmãs de paÃses diferentes. Comércio aquecido o ano todo, principalmente aos fins de semana e feriados, a fronteira seca também é alvo de quem quer fugir sem deixar rastros e porta de entrada de produtos ilÃcitos. E deu-se a fama.
Fama que incomoda a todas e deixa o desconforto entre os fronteiriços exposto. Conversam pouco, abaixam a cabeça. As palavras mágicas foto-entrevista-jornalista transformam qualquer sorridente vendedor no mais taciturno dos seres. Em seguida, na rua, descubro o motivo de tanta desconfiança. “Vocês vem para cá só para tirar foto nossa e mandar pro Fantástico dizendo que somos trombadinhasâ€, reclamam em português enquanto deixam algumas palavras soltas e incompreensÃveis em guarani.
Quando a questão é esclarecida, a nuvem de ambulantes se dissipa e a tensão se ameniza. “Somos todos pais de famÃlia, dona, não tem bandido aqui nãoâ€, finaliza Bruno, vendedor de perfumes. Com documentos brasileiros, que faz questão de mostrar, e sotaque guarani, Bruno reclama da publicidade negativa que a sua terra de dois lados recebe. “Aqui é zona de fronteira, vai ter bandido, claro que vai, mas é assim em todo lugar, não acho certo mostrar só esse ladoâ€, finaliza, enquanto recosta no poste da esquina com as ruas Rodriguez de Francia e Curupayty.
Na linha paraguaia, o regatón e a cachaca – ambos ritmos tropicais –, lideram no rádio. Do lado brasileiro, música sertaneja e axé. O lugar-comum é confuso: quando Brasil lhe parece, é bem provável que seja Paraguai. A fÃsica afirma que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço. Os 200 mil habitantes de Ponta Porã e de Pedro Juan Caballero mostram o contrário. Passam seus dias cruzando de um lado para o outro da fronteira sem se sentir estrangeiros em nenhum.
Por Laryssa Caetano
*Esta matéria foi editada e faz parte da edição nº 2 da Revista Overmundo.
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