Caetano queria fazer um disco de samba. Acabou fazendo um disco de rock misturado com samba, ou como ele mesmo diz: um disco de neosambas ou transambas com sonoridade de rock: uns “sambrocks”. Algo que soa tão estranho como este nome, realmente “a foreign sound”, ao gosto das polêmicas que Caetano gosta de provocar. Seu Zii e Zie, gravado com o apoio de um típico power trio roqueiro (guitarra, baixo, bateria) não é rock. E apesar de ter muito samba não é um disco de samba. É um disco de “sambrock”, algo que não é samba nem é rock e pretende ser uma mistura inédita (ou inusitada) dos dois, sem repetir as já inúmeras fórmulas de misturar esses dois gêneros já produzidas por outros artistas. Mas que neosambas caetânicos são estes:
“Perdeu” é um samba cru, tocado como se fora rock de garagem. Alguém já disse que é o “Meu Guri” de Caetano. Mas a letra não tem a riqueza poética que é comum tanto a Chico quanto ao próprio Caetano. Na verdade é praticamente uma sucessão cadenciada de ações acentuadas por verbos no passado e em suas sílabas tônicas finais, o que a faz parecer um moto contínuo de ações que, embora pareçam ir à frente, já aconteceram. Um samba com uma síncope tradicional que soa estranho ao ser tocado na guitarra e uma mensagem social típica dos sambas de morro da década de 1960, mas totalmente contextualizado nos anos 2010. O título se vale de uma expressão geralmente dita por bandidos a suas vítimas após um assalto para expressar um sentimento que, se em princípio se aplica ao assaltado, de fato, é comum a ambos, conforme a canção.
“Ingenuidade” é um samba das antigas, de autoria de Serafim Adriano, tocado como se fosse um roquizinho antigo e tosco. Assim como um samba tocado sem sofisticação musical, este “sambrock” tem o violão comum de Caetano ao fundo, a guitarra básica de Pedro Sá, tocada com uma batida de samba, acompanhado por uma bateria monorrítmica e um baixo que evolui timidamente com fraseados típicos dos bordões de um violão de sete cordas. Tudo pontuado por uma guitarra com efeitos que por instantes quebra a monotonia musical da canção, mas que acentua a intencionalidade do tratamento estético estranho que Caetano preferiu dar à canção. E ao compará-la à bela interpretação de João Bosco, que a sofistica musicalmente, não se pode deixar de imaginar Caetano tocando-a simplesmente ao violão e emprestando-lhe a conhecida beleza de suas interpretações solos para velhos e bons sambas.
“Diferentemente” é um samba-choro com uma bela melodia que Pedro Sá sola na guitarra, evidenciando a estranheza que é uma guitarra solar algo que pareceria mais natural solada por um cavaquinho ou um bandolim. É a tal música que chamou mais atenção pela frase final que diz: “ E no entanto, diferentemente de Osama e Condoleezza eu não acredito em Deus”. Até Dona Canô não acreditou que seu filho não acredite em Deus. Mas talvez antes de querer simplesmente se manifestar sobre a crença ou não em Deus, a frase queira dizer que Caetano não acredita nem no Deus e na religião fundamentalista de Bin Laden nem no cristianismo tão fundamentalista quanto, de Bush e companhia. Basta ouvir seu depoimento sobre religião no documentário “Coração Vagabundo” que isto fica claro.
“Lapa” é um samba bonito que se assemelha a “Sampa” na homenagem ao simpático e cultuado bairro carioca, tradicional reduto boêmio e musical do rio, berço de um renovado movimento de revitalização do choro e do samba. “Cool e popular, a Lapa”, dá a entender, pela sonoridade cacôfona, algo totalmente contrário. E não se pode deixar de pensar nessa mesma música tocada pela anterior e musicalmente muito superior banda de Caetano. “Pobre e requintado e rico e requintado e refinado e ainda há conflito. Pelourinho vezes Rio é Lapa”. Caetano está falando da Lapa ou dele mesmo?
Em “Falso Leblon” Caetano declama: “Mas o meu samba transcende e apaga as pegadas que ela quer deixar”. A frase que se aplica à personagem da canção também pode se lida como a atitude de Caetano em deliberadamente rejeitar em suas experiências com o seu “novo samba” influências já impregnadas em sua própria música.
“Lobão Tem Razão” começa com um samba dolente e triste e acaba em um solo de guitarra distorcida após a frase final da canção: “chove devagar sobre o Redentor, se ela me chamar, agora eu vou”. Uma referência à morte? “A Cor Amarela”, um samba de roda baiano, levanta o astral. “ Uma menina preta de biquíni amarelo na frente da onda. Que onda, que onda, que dá, que bunda, que bunda.” (ou que “boom” dá).
E como chove neste disco de Caetano. As chuvas se transformam nas lágrimas que o poeta chora em “Por Quem”, uma bonita canção que lembra as canções do disco gravado em Roma por Caetano e especialmente “Micheangelo Antonioni”, que emocionou o cineasta.
Caetano é conceitual, muito mais que musical.
Chamado de musiquinho pelo grande músico Hermeto Pascoal Caetano provoca tentando mostrar que mesmo com pobreza musical e mesmo pouca sofisticação poética, pode construir conceitos complexos e profundos. Privilegiando as idéias à música, Zii e Zie é deliberadamente pobre musicalmente. Mas esta opção estética pela simplicidade musical já havia sido tentada por Caetano em algumas canções do “A Foreign Sound”, como “It´s Allright, Ma” de Dylan em que Davi Moraes constrói um arranjo no estilo guitarra,baixo, bateria mas com muito mais brilhantismo musical.
Para encerrar, diria que enquanto o “sambrock” de Caetano não agrada de cara e requer certa atenção (ou boa vontade) para ser decifrado, um novo samba ou o mesmo velho e bom samba revitalizado está sendo feito por uma geração de músicos jovens em muitas partes do país. Mas isto é assunto para outro post.
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