Do analógico ao digital. Essa conversa escutamos há tempo, mas raramente quando o objeto de análise é a TV. Vivemos um momento de transição, em que o modelo de TV Digital tem sido discutido com veemência. A questão é que a mídia nacional tem abordado o tema de forma reducionista. Se limitando a discutir propósitos técnicos, como "alta definição" da imagem e padrões de implantação da tecnologia. Já temas como interesse público e interatividade tem sido postos de lado.
Buscando agir a favor desses pontos esquecidos, mais de cem entidades no Brasil têm entrado na briga pelo direito humano à comunicação. Convidamos o jornalista pernambucano Ivan Moraes, representante da Ong Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF), para nos dar uma introdução sobre TV Digital e sua possível democratização.
TV Digital?
"Tecnicamente falando, é um sistema de transmissão de dados por meio de um código binário (hoje, transmitimos de modo analógico, através de ondas eletromagnéticas). Na prática, algumas coisas vão mudar com certeza. A imagem, seja lá qual for o padrão escolhido, será melhor, livre de "fantasmas" ou "chuviscos". O som também melhora bastante. Agora, dependendo do padrão que for escolhido (e do modelo de negócios adotado), outras mudanças também podem ocorrer. Poderemos ter, por exemplo, uma multiplicação dos canais, dando vez a mais sujeitos se posicionarem publicamente em audio-visual. Disso também depende a interatividade. Já pensou pagar as contas pela televisão? Isso pode acontecer. Ou não."
Como a digitalização vai afetar a vida das pessoas na prática?
"Pode afetar um bocado ou muito pouco. Se, por exemplo, importamos o padrão japonês fechado e mantermos o mesmo modelo de negócios vigente, sem alterar em nada a política de concessões de televisão. O que teremos, então, é a possibilidade da alta resolução para a mesma programação. Isso, claro, para quem tem grana pra comprar o conversor ou um televisor digital. Ah, você também poderia ver o Big Brother no seu celular, se você tiver grana pra comprar um celular incrivelmente fantástico e caro. Agora, se a gente mexe com o modelo de negócios, aí o bicho pode pegar. E pode ser fantástico. Hoje, mais de 90% dos domicílios do Brasil têm televisão. Pra você ter uma idéia do que é isso, 87% têm geladeira. Já pensou se, em dez anos, pelo menos metade desses aparelhos consegue, através da TV Digital, algum tipo de interatividade e acesso à internet? Seria uma verdadeira revolução. Isso sem falar da multiplicação dos canais. Agora, é claro que isso não pode vir só. Tem que ser precedido pela discussão do modelo de negócios. Para o caso de multiplicar, por exemplo, é preciso garantir que os novos canais não vão ficar nas mãos dos mesmos concessionários, entende?"
Por que é importante a discussão e o incentivo às pesquisas brasileiras?
"A discussão é fundamental. Não podemos nos deixar convencer de que se trata de uma discussão técnica, restrita a especialistas. O papo também é político. O povo brasileiro tem agora uma oportunidade muito grande para democratizar os meios de comunicação. Já pensou se os canais forem multiplicados e melhor distribuídos? Silvio Santos poderia continuar distribuindo os carnês do baú, mas se você quisesse assistir a uma tevê comunitária, ou mesmo à emissora da universidade, ou outra tevê pública qualquer, era só mudar de canal. Na Constituição Brasileira fala da "complementaridade dos sistemas privado, público e estatal" de comunicação. Hoje, quase tudo é privado. Com a TV Digital, teríamos mais chances de conseguir essa tal complementariedade. Quanto às pesquisas brasileiras, elas não começaram do zero. Ainda no início do governo Lula, quando o ministro das Comunicações era Miro Teixeira, foram prometidos R$ 150 milhões para nossas pesquisas, que deveriam levar ao menos 12 meses. Corta aqui, corta ali, pouco mais de R$ 50 mi foram gastos. Mesmo assim, 80 instituições e mais de 1500 pesquisadores(as) trabalharam por oito meses e conseguiram resultados considerados excelentes. Imagine o que fariam com mais tempo e dinheiro? Será que não valeria a pena esperar mais um pouco e investir mais em nossa tecnologia?"
Onde termina o interesse das grandes empresas e onde começa o interesse do público no assunto?
"Veja bem. A Constituição de 88 diz que a programação de televisão deve dar preferência a finalidades educativas, culturais, artísticas e informativas. Diz que deve promover a cultura nacional e regional, que deve estimular a produção independente e que deve respeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família. Agora eu pergunto: isso está acontecendo? Para as empresas, o interesse público já foi pro espaço há muito tempo. O que vale é o que se pode ganhar com isso. É preciso que o "da poltrona" não seja mais visto apenas como um consumidor, mas como cidadão. Se comunicação é direito humano, como é que informação pode ser tratada como mercadoria? Isso não faz sentido, como não faz sentido usar a lógica de mercado para se regular a televisão. O interesse público deve prevalecer e isso não é necessariamente incompatível com o lucro das empresas. Pegando o exemplo da TV Digital, o que é que nós queremos? Ver o detalhe do bigode do Ratinho? Ou ter a oportunidade de, através da televisão, conhecer melhor o povo Truká, de Cabrobó ou as bandas que fazem a nova cena musical do Ibura? Queremos ou não mais canais para que o povo possa se expressar? Queremos ou não interatividade?"
Tv Digital e Inclusão social.
"Antes de começar uma palestra, eu costumo fazer uma pesquisa. Pergunto o que o pessoal sabe sobre os povos indígenas em Pernambuco, sobre as comunidades quilombolas. Pergunto sobre manifestações artísticas em bairros do subúrbio e mesmo sobre a representação parlamentar no Estado. Depois eu pergunto quem foi a última esposa de Ronaldinho. Os resultados são incríveis e deixam clara a invisibilidade da maior parte da população. Quem não tem acesso aos meios de comunicação é como se não existisse. E como é que gestores(as) públicos(as) vão fazer política pública pra quem não existe? Poder se expressar - e ser compreendido(a) é um direito humano que não pode ser dissociado dos outros."
Para quem trabalha de forma independente com audiovisual, de que forma poderá utilizar a TV Digital?
"Se houver a multiplicação democrática dos canais, quem trabalha com audiovisual verá multiplicar-se as chances de suas obras serem veiculadas. Hoje, praticamente são raros os espaços das produções independentes. Na lógica do mercado, as brechas na grade de programação são negociadas e poucos(as) têm condições de cobrir esses custos. Isso também é curioso. A empresa que é contemplada com uma concessão pública para utilizar um canal. Aí pega e "loteia" a grade para vender/alugar os espaços. É como se você me emprestasse seu carro para eu poder levar teus filhos na escola e eu o utilizasse como taxi."
Com o desenrolar dos acontecimentos, você está confiante no resultado final?
"Quando se milita no movimento do direito à comunicação, a gente aprende a comemorar muito as pequenas vitórias. Pra gente está sendo muito bom ver o debate se espalhando, ver a quantidade de eventos que estão acontecendo no Brasil inteiro e ver também que Pernambuco tem sido uma referência nacional nessa movimentação. Falar de direito humano à comunicação já não soa tão estranho e é fantástico ver a quantidade de gente querendo entender mais o que está acontecendo. Já houve dois adiamentos da decisão, o que a gente encara como vitórias, embora tenhamos a consciência de que não fomos os únicos envolvidos nesse processo. Agora, no dia 4 de abril, haverá um seminário no Congresso Nacional para discutir isso. O CCLF vai estar lá, claro. A própria possível saída do ministro Costa, capataz das emissoras, que deve disputar o governo de Minas, também é um bom sinal para a gente. Então, por mais difícil que possa parecer esse embate, a gente sempre fica esperando o melhor dele."
Quer deixar alguma mensagem para quem está lendo a matéria e se interessa/preocupa com a problemática?
"Não existe direito que não seja reivindicado. Se você acha que a televisão não tá legal, que pode mudar, é preciso fazer alguma coisa. Se você concorda que o povo tem o direito de se comunicar, precisa fazer alguma coisa. Essa discussão da TV Digital ainda pode render muita coisa e a possibilidade de algo muito interessante acontecer é grande. Aqui, no Recife, a Campanha "Eu quero discutir TV Digital" já ganha corpo e é vista nacionalmente. Criamos uma comunidade no Orkut chamada "Eu quero discutir TV Digital" que cresce a cada dia. É preciso se informar para participar dos debates, dos atos públicos, dos seminários, das audiências. A gente ainda pode fazer uma diferença. Para isso, é preciso que as pessoas percebam que não são reféns da mídia e passem a interferir. E isso não é conversa só pra jornalista, pra publicitário. É pra a advogada, pro engenheiro, pra o cozinheiro, pra a motorista... Comunicação é uma coisa importante demais pra ser somente discutida por comunicadores e comunicadoras."
TV Digital na web:
www.crisbrasil.org.br
www.intervozes.org.br
www.fndc.org.br
www.cclf.org.br
www.midiaindependente.org
* Matéria publicada em abril de 2006 na Revista Giro # 1.
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