Que tristeza me dá quando acesso o Google (nosso totem contemporâneo) e vejo que ninguém falou ainda da peça sobre que devo falar. É necessário confessar, tenho tido muita sorte com os espetáculos que ando vendo em São Paulo. Cada vez faz mais sentido elaborar um comentário sobre cada pedaço desse movimento de (pra dizer pouco) "fazer teatral muito diverso" que está acontecendo na nossa cidade.
A pérola de hoje é O Perfeito Cozinheiro das Almas deste Mundo, em cartaz no Sesc Paulista (sempre o Sesc) até o dia 24 de junho. E como foi longe esse pessoal. Ao procurar pelo tÃtulo, facilmente se encontra a referência a Oswald de Andrade e fácil também seria fazer uma montagem naturalista sobre aquele grupo de 22. Foi o caso de Tarsila, que esteve em cartaz no Sesc Consolação há cerca de dois anos, e que não saÃa de uma mitificação bastante ufanista dos quatro ébrios da semana de 22 (Mário e Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e Anita Malfatti). Essa nova montagem faz questão de voltar quatro anos antes, em 1918, para contar uma história de amores no melhor estilo Wong Kar-Wai de idas e vindas temporais.
O Perfeito Cozinheiro nos recebe com uma cenografia inacreditável para aquele prédio que está dito pra ser o núcleo "provisório" na Av. Paulista do Sesc. A princÃpio se espera algo que nos faça pular das pequenas cadeiras posicionadas em lugares diversos. Andamos pela terra e sentamos ao lado de uma imensa cerejeira, dentro de um local que parece estar no pôr-do-sol, ao lado de janelas que dão para 10 andares de altura. No entanto o que nos chega ao começar o espetáculo é bem menos, bem mais sutil e por isso acaba tocando muito mais.
Carrego uma certa angústia quando noto atuações naturalistas/realistas no teatro. Mas essa expressão não dá conta do que é a interpretação das duas duplas no espetáculo. Há um quê dos silêncios de Jon Fosse, um pouco de novela da Globo (difÃcil reconhecer, mas há) e muito de um tempo de diálogo extremamente bem trabalhado entre os atores. Fico me perguntando o que fizeram os preparadores corporais nessa peça e suponho que seja frescura, pois o que há sim nessa montagem é uma mão exata nas marcações e um ensaio meticuloso das falas. Tudo, afinal, corrobora pra fazer os três mundos apresentados no espetáculo serem ultrareais.
A certo momento, pensamos no melodrama. Sim, ele está presente, sobretudo na trilha. O medo bate quando a equipe Bacante olha pro lado e encara ela, Marie Gabi, a Gabriela e pensa: fudeu. Mas não, não há razões para pânico. Lembramos que ela estava também na noite dos ilustres em que estreou A noite no Aquário, na trilogia de nove peças da Praça Roosevelt. A maior cria da E.A.D. parece que também respira os novos ares do teatro. E voltamos para o melodrama, mas agora ele não assusta mais.
Da história, basta dizer que começa com a relação entre Cyclone (musa dos autores que escreveram o Perfeito Cozinheiro) e Oswald de Andrade, e termina com a relação entre Cyclone e Oswald de Andrade. Só que esqueçam a história real. Aliás, isso vale muito para professores de literatura: não levem seus alunos para assistir essa peça. Inclusive, professores, os atores têm sotaque nitidamente carioca pra falar da história paulista. Não há verossimilhança, graças a Deus. Não vale pro vestibular.
Enfim, O Perfeito Cozinheiro das Almas deste Mundo, assim como os filmes de Wong Kar-Wai, é peça pra ser vista três, quatro ou cinco vezes. Uma para a cenografia, outra para entender a interpretação e muitas, mas muitas outras vezes para aprender um pouco mais sobre dramaturgia de adaptação.
Publicado originalmente na Revista Bacante.
FabrÃcio Muriana · São Paulo, SP 29/5/2007 17:47Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
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