Terminal de Messejana às 16h37
Domingo, sol em agonia. A cidade aperreia-se, pés sujos de areia da praia, e o movimento no terminal de integração de Messejana, um dos sete existentes em Fortaleza, emparelha-se, em quantidade e barulho, a qualquer romaria das tantas marcadas com um cÃrculo vermelho no calendário religioso cearense.
Na fila do Grande Circular II – hipérbole razoável –, o bodejado de sempre. Homens, mulheres e crianças de pele curtida pelo sol entretidos numa algazarra sem fim. O destino, comum a todos, é integrar os cerca de 180 passageiros (entre afortunados que viajam sentados e supliciados que, à falta de opções, seguem de pé) a embarcar no próximo ônibus, que cortará, em seqüência, os terminais do Siqueira, Antônio Bezerra, Papicu e, novamente, Messejana, num grande e impreciso cÃrculo ao longo de mais de duas horas de viagem.
Uma famÃlia impacienta-se. Outra empanturra-se com salgados. R$ 1,50, mais o refrigerante, que pode ser de cola ou de guaraná. Vendedores ambulantes, sermões retumbantes, esfarrapados de naipes variados – era uma tarde bonita.
Na agenda, o compromisso dominical: missa, aniversário ou casamento. Os trajes das crianças, bem-arranjados, e o penteado rigoroso da mulher indicam um destino especial, extraordinário. Após rápida confabulação, a matriarca costura rota alternativa. Num muxoxo, o homem concorda, ressalvando apenas a demora. “Devia era de ter falado isso antes, há meia horaâ€. Seguem, crianças à frente, em fila indiana.
Ônibus à vista; ao redor, inevitáveis cotoveladas e encontrões, distribuÃdos prodigamente. Na fila destinada a idosos, deficientes e mulheres com crianças de colo, o empurra-empurra segue à risca o ritual da fila onde vale tudo. O caótico embarque não demora. As portas se fecham. Preso, um passageiro reclama. O motorista, prudente, estaca, abre a porta, e o homem se desvencilha da boca mecânica.
Terminal do Siqueira, 17h28
A mãe grita, mas o filho segue numa carreira à Forrest Gump. Rápido, o cobrador de sobrenome Alves a despacha. Angustiada, a mulher consegue segurar o braço fino do garoto. Mãos dadas, mulher e cria caminham através da passarela no terminal do Siqueira, o segundo na seqüência. Lá, o Grande Circular II não se demora, devolvendo ao chão boa parte da carga humana que trazia para, no instante seguinte, engolfar mais um punhado de gente, que se aperta, se ajeita, se arranja no rebuliço do ônibus. Destino imediato: Antônio Bezerra.
No seu canto, o cobrador observa, as mãos hábeis catando pequenas moedas de cinco e dez centavos. Não há espanto ou estresse, apenas serenidade. Um Buda, diriam alguns, perdido em meio aos solavancos do trajeto que faz diariamente, ao longo de mais de 7 horas de trabalho. Conversador, Alves, um jovem de 29 anos, casado e pai de duas crianças, logo revelaria a origem de tanta retidão: um curso de boas-maneiras.
“A gente aprende como tratar os passageiros, como reagir no caso de passageiros grosseiros ou descontroladosâ€, explica numa voz amiudada. Fala realmente baixo, temendo sabe-se lá o quê. Quando uma passageira esquece-se de passar o cartão eletrônico na catraca e dá mostras de que não pagaria a passagem, Alves a amansa. E ela saca da bolsinho que tilinta de moedas a quantia de R$ 1,60.
Terminal do Antônio Bezerra, 17h49
Entre o Siqueira e o Antônio Bezerra, e daà até o Papicu, a cara do Grande Circular II sutilmente muda. Mulheres com crianças de colo, idosos e jovens cedem lugar a tipos mais ou menos homogênos, etária e socialmente. Sobretudo no vestir e no falar. Num repente, o ônibus silencia; as gargalhadas são, agora, apenas eco na memória recente dos que seguem desde o primeiro ponto de embarque, no terminal de Messejana. Os modos espalhafatosos que animaram o trajeto anterior diluem-se a pouco e pouco, restando apenas risos ligeiramente abafados.
O ônibus esvazia-se e, acompanhando-o, Júlio expande-se. Conversa longamente e dá detalhes sobre a rotina do cobrador de ônibus. Horários de lanche, por exemplo, são três durante um turno de trabalho, que, no seu caso, começa à s 15 horas e se encerra à s 0h35. “Quando a última viagem acaba, a gente tem que entregar o ônibus na garagem. Essa é a grande desvantagem de quem trabalha à noite: ter que deixar o ônibus láâ€, lamenta o cobrador, um preguiçoso assumido. “Só não troco de horário porque não gosto de acordar cedo. Aliás, eu nem consigoâ€.
Júlio começou na Via Máxima, empresa em que trabalha há quatro anos, logo após ter abandonado o ofÃcio de açougueiro. “Larguei porque vi que não tinha futuro. O patrão dizia que um dia colocaria um açougue pra mim, e esse dia não chegava nunca. Depois de quase dez anos trabalhando, fui emboraâ€, relembra. A morte prematura do pai, há doze anos, rápida e inadvertidamente o transformou em "homem da casa". “Fui atrás de emprego e encontrei esse açougue. Quando entrei, não sabia nada. Fui aprendendo aos poucosâ€. Para chegar aonde chegou, o cobrador dilacerou, sem descanso semanal, as carnes que chegavam ao açougue pelas portas do fundo. Como saldo, aponta: "Não sou enganado quando vou comprar carne". Ele ri e revela tratar-se de um hábito passar a perna nos fregueses. A velha história de gato por lebre.
Terminal do Papicu, 18h59
Escurece de todo. Em quilômetros, algo em torno de 180, equivalentes a três voltas completas. “Por dia, são três. Nunca mais nem menos que issoâ€, revela o cobrador. No relógio, 2 horas e 45 minutos de viagem. Sem livros ou revistas, apenas mensagens eletrônicas no visor verde-musgo do Get e bips a cada novo giro na catraca. “A gente fica acostumado, hoje nem sinto maisâ€. Novo giro na catraca, novo bip.
Prancheta em punho, o cobrador registra o número exibido num mostrador de plástico logo abaixo da cadeira. No final do dia, o número exato de rostos anônimos que lhe cruzaram, por alguns segundos, o caminho. “Normalmente, são em torno de 450 passageiros, fora os que entram nos terminaisâ€, informa. Em datas excepcionais, como o 1º de janeiro, esse número pode chegar aos 700. “Foi uma loucura isso aqui no primeiro dia do ano. O ônibus lotado o tempo inteiro. E, ainda por cima, com o estÃmulo da tarifa a um preço menorâ€.
Histórias, apenas as de assalto ou assédio. Por uma razão evidente, as primeiras encontram-se em maior número: viver do transporte coletivo hoje constitui um grande risco. “A gente sabe que, hoje, não tem mais essa de linha segura. Todas são perigosas. Mas, ainda assim, esta aqui é uma das mais visadas pela bandidagemâ€.
Há quinze dias, Júlio despediu-se da fama de sortudo. “Tirava a folga de um cobrador na linha Messejana-Papicuâ€, começa. “Era cedo da noite, umas oito horas, e seguÃamos em nossa última viagem quando os caras, quatro ao todo, entraram no Messejana-Papicuâ€. Não mais que vinte minutos dentro do ônibus. Enquanto o cobrador permanecia sob a mira de uma pistola (“ela brilhava na minha frenteâ€) e um segundo assaltante mantinha-se ao lado do motorista, cochichando-lhe gentilezas ao ouvido, duas outras pessoas procederam ao que, popularmente, conhece-se como rapa. “Celulares, foram pelo menos oito ou dezâ€, relembra. Era sexta-feira, uma noite de manso sereno no pára-brisa do veÃculo.
Nova leva de passageiros invade o Grande Circular II entre o Papicu e Messejana. Em sua maioria, trabalhadores a caminho de casa. Em comum, um cansaço expresso sobretudo no olhar, fixo num ponto do momento em que sobem ao ônibus ao de desembarque.
Às 19h30, o motorista manobra e encosta na plataforma de Messejana. alÃvio: “Este ônibus não vai maisâ€. Não por trinta longos minutos.
Antes de seguirem até a lanchonete mais próxima, motorista e cobrador trocam algumas palavras após muito tempo de silêncio. Júlio indica qualquer coisa além, e os dois riem. Na cantina, uma vitamina com salgado é suficiente para fazer aliviar o cansaço. “Essa vida é difÃcil, sim, mas eu gosto. Não quero trocar nem de horário, porque, como já disse, tenho uma enorme dificuldade para acordar cedoâ€, arremata Júlio.
Que seja publicado!. Escrito com muita inteligência, e destacando o olhar de pessoas comuns, gosto disso.
Parabéns, abraço.
Brilhante! Um texto limpo, de dinâmica agradável.
Muito bom! Mesmo!
Parabéns!
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